19 de nov. de 2019

Não compreendo a celebração da mentira que se convencionou chamar de “proclamação da república”


Bruno Garschagen - Não compreendo a celebração da mentira que se convencionou chamar de “proclamação da república”. Porque a república presidencialista no Brasil foi imposta em 15 de novembro de 1889 com um golpe militar que derrubou a Monarquia Parlamentar Constitucional.

Desde lá, tivemos 34 presidentes e seis constituições. Assim como voltaria a acontecer em 1964, o golpe militar contou com o apoio das elites militar, política, econômica e intelectual. Diz-se que naquele 15 de novembro de 1889 o Brasil dormiu monarquista e acordou republicano. Era melhor o país não ter dormido.

Encerrava, assim, com imerecida desonra, a nossa Monarquia, que em três ocasiões (1834, 1837, 1881) reformou o seu modelo político para se adequar aos desafios da época e estava prestes a realizar a quarta reforma, com o Gabinete Ouro Preto, quando foi derrubada.

A república nasceu, portanto, maculada. Fruto de um golpe militar, jamais conseguiu superar as virtudes construídas pela nossa Monarquia e as vicissitudes de sua origem jacobina. Com a república, o que era ruim não era novo, e o que era novo virou tragédia.

A história da república presidencialista brasileira é, também, uma sucessão de golpes e do desenvolvimento de uma tradição política autoritária. A república começou com dois governos autoritários (Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto). A República Velha terminou em estado de sítio seguido de um golpe militar. A Era Vargas começou com um golpe eufemisticamente chamado de “Revolução de 1930” e sediou um golpe dentro do golpe em 1937, eufemisticamente batizado de “Estado Novo”, que de “novo” não tinha nem o ditador. Outro golpe ocorreu em 1945 para afastar Getúlio Vargas do poder e novas eleições foram convocadas. Em 1964, um contragolpe impediu o golpe orquestrado pelas forças ideológicas e políticas que sustentavam o governo de João Goulart. Entre 1964 e 1984, também houve golpes dentro do golpe. Golpe, portanto, não é novidade na história política republicana do Brasil.

Alguns apoiadores do golpe de 1889 perceberam muito cedo o tamanho do problema que ajudaram a criar. O sentimento de muitos que apoiaram a derrubada da Monarquia foi, aliás, semelhante ao expresso pelo jornalista e político Quintino Bocaiúva, polemista inveterado, republicano fervoroso. Em carta à Princesa Isabel, Bocaiúva pediu perdão a Deus pelo que fez para o advento da república e se disse surpreso pelo fato de o povo não "ter cortado a cabeça de quantos" como ele que haviam cometido "tão funesto erro".

A república presidencialista permitiu o crescimento do Estado e do poder do governo e contribuiu decisivamente para esvaziar do imaginário popular o sentido de dever e de responsabilidade existente durante a Monarquia e o substituiu gradualmente pela ação do governo. A consequência foi o aumento do estatismo na elite política e no imaginário popular.

Para impor culturalmente o novo modelo político num país majoritariamente monarquista, os republicanos fizeram tudo o que podiam para destruir quaisquer traços e símbolos públicos e imaginários da Monarquia. Nesse processo, a bandeira foi modificada, diversas datas cívicas foram criadas, tudo foi feito para tentar destruir de cima para baixo a identidade cultural e política monárquica cravada no espírito, no coração e na mente dos brasileiros.

Com isso, os republicanos sepultaram não só a Monarquia Parlamentar Constitucional, mas a parte benéfica de sua experiência de quase sete décadas de Brasil independente, incluindo a tentativa de desenvolver um governo representativo para delimitar o poder de cooptação pelo estado patrimonial. A república destruiu a herança e o espírito de continuidade que fornecia aquilo que Edmund Burke chamou de “um princípio seguro de conservação e um seguro princípio de transmissão; sem de todo excluir um princípio de melhoramento”, elementos capazes de manter “a união do passado e do presente, da tradição e do progresso” ("Reflexões sobre a Revolução em França", Tradução de Ivone Moreira, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015).

Lamentavelmente, nos restou não um legado virtuoso, mas uma infame caricatura criada pela ignorância e a ridicularização de um período relevante e fascinante da história brasileira.

Não, não houve “proclamação da república”. Houve golpe. O golpe mais nefasto da história do país e cujas consequências sociais, políticas e econômicas nos afetam até hoje.

PS: Post de 2017 que sempre será atual.

PS2: A bandeira da foto foi retirada de um mastro no Rio de Janeiro no dia seguinte ao golpe e entregue, posteriormente, à família do Príncipe Luiz Philippe de Orleans e Bragança, que hoje é o seu guardião.

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