Moisés Diniz *
Dez horas da noite, meu computador século vinte registra a minha vontade de falar do que vi e senti nesses dias de agonia do meu povo, o povo humilde de Tarauacá, que transformou a minha casa e a sede do meu Partido em lugares de peregrinação. Às 6 horas da manhã uma pequena multidão concentra-se no pátio de minha casa. Um outro numeroso grupo aguarda-me na sede do Partido. Se, por ventura, descontrole ou necessidade, faço da noite o dia, no bar com amigos ou dialogando com o meu teclado, aquela pequena multidão, pela manhã, multiplica a sua angústia na espera. Um a um confessam os seus pedidos: trabalho, trabalho, trabalho. De vez em quando, uma passagem, um remédio. Aproxima-se o meio dia naquele diálogo terrível: dizer não ao cidadão que não tem cidade, que congestiona a periferia. É que a dignidade não ocupa apenas o mundo da ostentação, os pobres também a apreciam, exigindo que o seu pedido, como um lamento, seja pessoal e quase anônimo.
Minha agenda, como um borrador de seringal, faz dos pedidos um cordão de estiva. A banha e a munição, o “carrêgo” de pilha, o açúcar, o óleo e o sal. Anoto, sem fé, seus nomes e sonhos desgraçados de, pelo menos, vestir e alimentar os seus filhos. Sei que, enquanto perdurar a maldição do capital, a procissão dos proscritos ajoelhar-se-á aos pés de quem comprar esperanças. Maltrata constatar que eles continuarão famintos, vivendo em pocilgas humanas, alcoolizando as suas frustrações biológicas, rezando seus traumas oníricos e ideológicos. Todavia, não serei mais um a contribuir para que eles matem a sua esperança! Como um monge lhes direi: não desistam, amanhã vossa mesa terá pão; vossos filhos, escola; vossos pés serão adornados por mocassins e vossas mulheres vos aguardarão com um sorriso aberto, ora nos postos de trabalho, ora na porta de vossas casas. Não morram! Apesar de todo o maldito sofrimento, ensinem vossos filhos a sorrir, brigar, resistir. Amanhã, o sol aquecerá vossas utopias!
Retorno ao abrigo da família, nem vejo que um terço da noite já despediu-se do luar. Alguns copos de cerveja anestesiam a minha angústia que, se eu olhar bem, verei que é milenar. Meus ancestrais, pelo menos, não deduziam suas dores, não calculavam a extensão de suas agonias. Adentro minha casa e a angústias do povo fogem como neblina. Minhas filhas pedem coisas supérfluas, eu atendo, pedem carinho, eu tenho paciência para dar. Depois da minha porta, do outro lado da cidade, falta o básico, o alimento, o remédio, supérfluo é o carinho familiar. Disparo minhas interrogações na direção do meu próprio peito que, incompetente, transfere-as para o meu cérebro. Este, como o meu computador, tem que grafar e responder as minhas dúvidas e as minhas ironias. Que mundo dorme lá fora, que mundo nascerá amanhã? Que fizemos para merecer tamanha exclusão? Quem pagará a eterna conta daqueles que morrem como formigas sob o fardo da exploração humana e da complacência do nosso Deus?
Interrogações que maltratam, como uma ferroada, me levam a falar das coisas do interior, de suas alegrias e de suas frustrações. Aqui, como uma sonolenta homilia, o tempo custa a passar. O povo perambula pelas ruas em busca de uma mão estendida, um sim fraterno, um altar. Diferente da capital, aqui os excluídos transitam no mesmo lugar, dividindo a rua com os donos do dia, não escondem-se na periferia das grandes cidades, mascarando o fruto da exploração. Aqui, como uma doença da pele, as coisas boas e também as “podres” chocam a nossa fidalguia e agridem o nosso olhar. Somos um clã dividido, vivemos na mesma aldeia, mas não partilhamos o suor. Nossa música está longe da MPB, curtimos o que a elite chama de brega, nos clubes escassos e nas dezenas de bares bebemos cerveja, cachaça e até álcool curativo. Nossas mulheres são belas como uma madrugada de janeiro, uma tarde de maio, uma manhã de agosto, os homens são românticos, descontrolados, às vezes, possessivos, querendo fazer de sua amada um campo de cultivo medieval. A hospitalidade desconcerta, acolhe, faz da chegada uma bênção e da despedida uma dor.
Somos o povo de Tarauacá!
E se conquistamos outras terras, se vivemos em outras cidades, não perdemos as raízes, continuamos a ser o povo de Tarauacá! Não nos curvamos! Entendemos o jogo do poder. Estamos entre os três primeiros municípios do Acre a eleger um prefeito de esquerda e o primeiro a eleger dois vereadores e um vice-prefeito do PCdoB.
Somos o povo de Tarauacá!
Enfrentamos magistrados sujos e oficiais truculentos. Enfrentamos governadores e prefeitos corruptos. Enfrentamos proprietários de terra e gente que queria controlar até a alma do povo de Tarauacá. O passado perdeu e o futuro está florescendo. Já podemos ouvir o seu canto e sentir a sua alegria!
Continuamos aqui, resistindo às intempéries políticas e às burrices de quem não olha o seu tempo com olhos de águia.
Somos o povo de Tarauacá!
O que estamos construindo aqui é bem mais sólido que uma administração provisória ou um mandato parlamentar. Estamos construindo um modo de vida, um jeito de caminhar.
Nossa utopia tem lugar, hora marcada para nascer, tarefas históricas a cumprir e símbolos sagrados para cultuar. Nossas mães não esqueceram de gravar nas hélices tortas de nossos genes: sereis como lobos e pardais. Implacáveis como um vulcão e um vendaval e ternos como um beijo do orvalho e um entrelaçar de mãos.
Somos o povo de Tarauacá!
* Moisés Diniz é Deputado do PCdoB
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