17 de nov. de 2012

A PROVA DO CRIME E A TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO


É FALSA A POLÊMICA DE QUE A TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO DISPENSA A PROVA

Nacir Sales

O Ministro Ricardo Lewandowski, ao julgar José Dirceu no caso do Mensalão, referiu-se à Teoria do Domínio do Fato como sendo uma doutrina que diminui o campo da prova na medida que amplia o espaço para o arbítrio. Ao repetir incansavelmente o bordão “vou julgar conforme a prova dos autos”, o Ministro Revisor dizia sem dizer que seus colegas estavam a julgar contra a prova dos autos, ou mesmo, condenando sem provas. A imputação causou reação e os apartes dos Ministros confrontados ficaram como um momento quente no plenário da Corte.

Ministro condena os votos condenatórios

O Revisor concluiu que o Ministro José Dirceu estava sendo condenado pela aplicação da Teoria do Domínio do Fato, e não pelas provas dos autos. Dai, passou a condenar a teoria que fundamentava os votos condenatórios: condenando a teoria condenatória, absolvia o réu.


Absolvição pela confusão


O voto que absolvia também confundia: de repente, fez surgir um alvo secundário que passou a ser mais combatido que o alvo primário. O foco do debate migrou e todos os disparos deram-se contra o alvo plantado. O Ministro Ricardo Lewandowski a certa altura citou um professor de literatura, lembrança da juventude, a quem rendeu homenagens anônimas. Disse que ficou marcado por uma frase ouvida do professor, na juventude: a de que no Brasil os movimentos intelectuais chegam com 50 anos de atraso; assim explicou que a Teoria do Domínio do Fato estava sendo aplicada pelos seus pares quando mesmo o seu formulador, Roxin, já questionava a elasticidade da sua aplicação. Foi o suficiente para o Presidente do Supremo, Ministro Aires Brito dizer que esta afirmação não fazia justiça à intelectualidade brasileira, nem aos juristas: retardados todos por meio século, na concepção do Ministro Revisor da Ação Penal 470 e do seu professor de literatura.

A certa altura dos debates acreditei que o alvo secundário (sobre se a Teoria do Domínio do fato, dispensava o nexo do agente com as provas) deixou ao cidadão menos avisado a falsa impressão de que o ex-Ministro da Casa Civil estava sendo condenado sem provas. No dizer do Ministro Tofolli, ex-subordinado do Réu, seu ex-chefe estava sendo julgado porque era Ministro da Casa Civil... (imune ao debate o voto do Ministro Tofolli, vez que previsível e compreendido antes, durante e depois de ser proferido).

Não só fatos sofrem versões, teorias também

Acredito que o Ministro tenha atribuído um sentido para a Teoria do Domínio do Fato que ela, originariamente, não possuiu. Tratando de condenar a teoria desfigurada, despida de seus fundamentos originais, instalou um falso debate, um debate sobre a versão cujo antecedente está na crença de que a Teoria do Domínio do Fato dispensa o liame entre o réu e a prova, ou mesmo, dispensa a prova.

Esta ou qualquer teoria fundada na dispensa da prova para a condenação do réu não pertence ao sistema jurídico vivente no Brasil. Todavia, esta é a leitura que o Ministro Revisor faz tanto da Teoria do Domínio da Fato como da natureza fundamental dos votos que condenaram o Ministro José Dirceu.

Não posso julgar o julgamento que condenou José Dirceu, mas posso julgar a versão e a aversão do Ministro ao instituto do Domínio do Fato.

O que é Domínio do Fato? É o domínio do fato, ponto.

Domínio tanto para a decisão de realização do fato como para a decisão de impedir a realização do fato: dar a contra ordem, por exemplo. Enfim, domínio, na mais ampla e completa acepção: o fato é o dominado, o dominante é aquele que detém o poder de domínio sobre a sua ocorrência ou não. É pressuposto para a aplicação da teoria, que o réu seja o dominante, que tenha domínio sobre o fazer e o não fazer. A teoria dispensa de identificar no réu como executor, mas não dispensa de identificar na prova o liame entre o dominante e a manifestação do fato sobre o seu domínio;

Inexiste retardo teórico: a justiça é retardada na prática


Não creio que a teoria esteja sendo adotada no Brasil com 50 anos de atraso. Ao contrário, está presente e disponível em nosso Código Penal, precisamente quando em 11/7/1984 a Lei 7.209 modificou a redação do art. 62, inciso I:

“A pena será ainda agravada em relação ao agente que:
I - promove, ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes;

E pode ser aplicada na interpretação do art. 29:

“Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”.

Originariamente, a norma do art. 29 destinava-se a reprimir a autoria imediata (o executor do delito): sob a luz da Teoria do Domínio do Fato, passou a alcançar também o autor mediato (que por meio de interpostas pessoas domina a verificação do fato).  

Em 1940, de quando data o nosso Código Penal, a ação delituosa - como todas as demais ações da nossa sociedade - ontem era simples e hoje é complexa: o hoje sempre será complexo ante ao ontem.

Assim, o direito criminal, em 1940 poderia resolver a demanda dos fatos com uma leitura meramente literal do art. 29 do Código Penal.

A dinâmica social mudou. Como o direito não remanesce estático, mas é produto da dinâmica social, a norma se atualiza pelo pensamento, de forma positivada ou não. E o pensamento é causa, no sentido de origem, de toda e qualquer teoria. Eis pois que a teoria ora discutida é fator de adequação da norma no tempo.

Exemplo Hipotético: Um Novo Milionário que capta bilhões no BNDES e desvia parte para políticos que trabalharam nos bastidores da concessão do crédito. O Novo Milionário nunca pisou no prédio do BNDES... Estará o BNDES imune de ser palco de sua ação criminosa?

Vejamos um caso hipotético, onde um dono de frigorífico financiado com recursos públicos, desvia os recursos subsidiados e ordena a seu gerente a contratação de máquinas e operadores para a prática de determinado crime ambiental (passando o correntão em uma Área de Preservação Ambiental, por exemplo). O contratante decidiu fazer e, ouvindo os reclames da neta decidiu não fazer, suspendendo o inicio dos atos. No dia seguinte se arrepende e novamente decidiu fazer: e os tratores e tratoristas, que sequer conhecem o dono da fazenda, então fizeram. Todavia, não restou contrato escrito, não restou testemunho, apenas a prova de que ele ficou o tempo todo sentando na varanda da sua casa observando o procedimento sabidamente ilícito.  Nenhum julgador necessitará do concurso de uma teoria heterodoxa, que dispense provas, para condenar o fazendeiro: basta dar regência à Lei n. 9.605/98 que no art. 2o prevê que:

“quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir sua prática, quando podia agir para evitá-la”.

Quem é o agente, na norma aqui citada, senão quem detém o domínio do fato?

Da mesma forma um crime financeiro, destes praticados todos os dias nas agencias bancárias: pois assim como o chefe da boca de fumo comanda a ação de menores vapores no tráfico de drogas, seres invisíveis navegam em helicópteros comandando crimes cotidianos nas agências bancárias (em agências nas quais nunca estiveram).

Como se vê, não é questão de arbítrio, de heterodoxia, mas de efetiva aplicação da lei.

O Sistema perdeu o Domínio do Fato: os réus foram condenados

A Teoria do Domínio do Fato pode ser aplicada para interpretar o nosso sistema normativo, há muito: não fosse o sistema, histórico protetor de banqueiros e ministros corruptos, não haveria a sensação de atraso que sensibiliza o eminente Ministro Ricardo.

Se está sendo adotada com 50 anos de atraso é muito mais por uma questão de impunidade do que de embaraço na importação teórica. Eu não tenho meio século de vida, mas confesso que nunca vi ministros e banqueiros serem condenados como na ação penal 470. 

É fato!

Blog: umadvogado

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