Em minhas “andanças” na região amazônica na época dos Vôos de Integração Nacional, tive oportunidade de presenciar alguns “causos” incomuns que costumava registrar numa agenda de bolso.
O que se segue, ocorrido há 48 anos, me veio à memória após recente visita realizada ao Museu Emílio Goeldi, aqui em Belém, onde existem alguns animais nativos da região amazônica:
Domingo, 27 de março de 1960. O Catalina da Panair do Brasil, PP-PCW, escalado para a Linha do Rio Negro
(Manaus/Carvoeiro/Barcelos/Tapuruquara/Uaupés/Mercês/Taraquá/Mercês/Uaupés/Içana/Cucui), inicia a corrida para decolagem da pista do Aeródromo Ponta Pelada, em Manaus. O relógio de bordo indicava 10:08 GMT.
Ao todo seriam dez pousos e decolagens n’água até a última escala, dentro da rotina a que já estávamos habituados.
No dia seguinte, às 10:03 GMT, iniciamos o vôo de retorno a Manaus. O Comandante, após o pouso em Uaupés, optaria por um by-pass às localidades de Mercês e Taraquá, por motivo de falta de aproveitamento, em razão do que aproamos Tapuruquara, onde o pouso ocorreu às 13:55 GMT, porém com o motor n° 2 em passo bandeira, isto é, inoperante.
Concluída a análise da situação, tarefa a cargo do Mecânico de Vôo, dirigimo-nos ao alojamento existente na Missão Salesiana, na época sob a direção do Padre Pedro. A expectativa era de que seríamos forçados a encarar uma permanência estimada em três a quatro dias, já que haveria necessidade de aguardar a remessa do motor que seria enviado da Base de Manaus.
O restante da segunda-feira transcorreria dentro do marasmo característico das comunidades da região, entretanto, o Agente da Panair na localidade, senhor Macedo, preocupado com o ócio da tripulação, havia programado uma pescaria para o dia seguinte num igarapé não muito distante. Nosso cicerone seria seu filho, Oscar, um rapaz de 24 anos de idade.
Na terça-feira, após um lauto “breakfast”, embarcamos no “Santa Isabel”, um robusto barco equipado com dois motores pilotado pelo próprio Oscar.
A duração da viagem subindo o Rio Negro foi de cerca de quinze minutos, após o que nos encontramos bem no meio de uma extensão de água que mais se assemelhava a uma lagoa, onde o barco foi fundeado.
Iniciadas as atividades de pescaria, as expressões de admiração diante da exuberância da mata e, em particular, do silêncio reinante naquela vastidão denotavam o elevado grau de satisfação dos participantes daquele “convescote fluvial”. Nossa única preocupação passaria a ser com o manuseio dos caniços colocados a nossa disposição.
Trinta, quarenta, cinquenta minutos e nada de peixe.
Alguns minutos depois eis que surge algo inesperado numa das margens, uma Anta de porte avantajado que, vindo de dentro da mata, entra no igarapé onde começa a saciar-se quando, de repente, é atacada por uma Cobra Sucuri não muito volumosa que, emergindo com rapidez, a enlaça, tentando subjugá-la (a Sucuri costuma prender a própria cauda nas raízes submersas, antes de iniciar o ataque, de modo a dificultar qualquer tentativa de fuga no caso de reação da vítima).
Ato contínuo, a Anta dá um giro de 180° na tentativa de se desvencilhar, porém fica imobilizada após alguns passos, como se estivesse amarrada a um tronco.
Estabelecido o impasse, já que nenhum dos contendores parecia disposto a ceder, inicia-se um espetáculo que, na ocasião, me fez lembrar a prática de uma modalidade esportiva denominada “cabo de guerra”, na qual a força física dos participantes é colocada à prova.
Depois de algum tempo a Sucuri, cujo diâmetro sofrera redução significativa em conseqüência da “reação” da vítima, começa a se recompor, embora lentamente, o que faz com que a Anta seja levada a retroceder.
Não demora muito para esta se aperceber do perigo, passando a oferecer resistência, não chegando, no entanto, a dar o equivalente a mais de dois passos na direção oposta.
A impressão era de que a cobra não resistiria durante muito tempo àquela “sessão de esticamento”, até porque, mesmo que conseguisse provocar o afogamento da vítima, dificilmente poderia servir-se dela como repasto, considerando a desproporção de volume entre as duas.
Já se havia passado cerca de uma hora e meia do início daquele lento “vai-e-vem”, quando percebemos que a Anta começava a dar sinais de cansaço, o que indicava que o predador poderia sair vitorioso naquele embate.
Entre os apetrechos de pesca trazidos para bordo havíamos notado a existência de uma arma de fogo (espingarda calibre 20).
Tendo percebido nossa preocupação em relação ao agravamento da situação, nosso cicerone deslocou-se até a popa do barco onde passou a examinar a arma, entretanto, a distância entre o ponto onde nos encontrávamos e o dos contendores era um fato que deveria ser levado em conta, já que, mesmo um atirador de elite, se fosse o caso, dificilmente poderia alvejar a cobra sem causar algum dano à anta.
O Oscar, entretanto, era mais esperto do que imaginávamos. Com a arma apoiada no ombro direito, passaria a observar atentamente o “comportamento” dos antagonistas enquanto aguardava o momento adequado para sua entrada em cena.
Este surgiu no auge da fase de “esticamento” da cobra:
BUM!
O barulho do tiro (disparado para cima), naquele ambiente onde o silêncio era absoluto, teve o mesmo efeito da detonação de um canhão de grosso calibre e foi tão eficaz que a Anta, com o susto, foi levada a dar um surpreendente pulo para frente.
TAC!
Esse foi o ruído provocado pelo rompimento da cobra em duas partes.
A Anta não é um animal dotado de agilidade (pesa cerca de 180 kg), entretanto, ao sentir-se livre do jugo, partiu em disparada na direção de seu hábitat, levando consigo o resto da carcaça do predador, ainda enrolado no dorso.
Pena que determinados tipos de equipamentos abundantes nos dias atuais, tais como filmadoras portáteis, não existissem naquela época.
Texto escrito em 05-03-2008 por Josué Teixeira da Silva. Catalineiro de coração, faz parte da Associação Brasileira de Catalineiros – ABRA-CAT.
História inserida pelo autor no site do pessoal da Reserva da Aeronáutica, página Recordar é Viver, em 30-03-2008.