Ação é decorrente da Operação Boca Livre, que desmontou corrupção em projetos culturais; para PF, falta de fiscalização permitiu 'duas décadas de desvios'
Policiais federais durante a Operação Boca Livre, em 2016 (Newton Menezes/Futura Press/Folhapress)
A Polícia Federal indiciou 29 investigados na Operação Boca Livre – apuração sobre desvios de recursos públicos estimados em R$ 30 milhões liberados pelo Tesouro via Lei Rouanet. O relatório final do inquérito da PF atribui a dez empresas parcerias com o esquema supostamente montado pelo Grupo Bellini Cultural, alvo principal da investigação. Foram indiciados empresários, um advogado e executivos de grandes companhias – laboratórios, montadora, farmacêutica e até banca de advocacia –, por estelionato contra a União e associação criminosa. Alguns foram enquadrados também em falsidade ideológica.
A Boca Livre foi deflagrada em 28 de junho. Ela precedeu a Operação Boca Livre S/A, que saiu às ruas em outubro e fez buscas em 29 empresas – patrocinadoras que atuaram em conjunto com o Grupo Bellini, “associando-se aos seus integrantes com o fim exclusivo de desviar recursos”. A PF evitou um rombo ainda maior, de mais R$ 58 milhões, com a identificação de projetos fraudados que estavam em curso e que permitiriam ao Grupo Bellini captar recursos nesse montante. O relatório final da primeira operação foi encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF).
A PF indiciou executivos ou funcionários das empresas: Intermédica Notredame, KPMG, Lojas Cem, NYCOMED PHARMA (Takeda), Grupo Colorado, Cecil S/A, Scania, Roldão, Demarest Advogados e Laboratório Cristália. Os investigadores apontam ainda fragilidades do Ministério da Cultura (MinC) na concessão e fiscalização de recursos públicos que bancaram projetos culturais desde o início da vigência da Rouanet, em 1992, até 2013.
Durante longo período os patrocínios eram aprovados, mas não passavam por auditorias, o que, segundo a PF, permitiu a ação de fraudadores. O relatório final sugere abertura de ação por improbidade administrativa para responsabilização de funcionários do MinC por “danos ao erário e omissão”. No âmbito criminal, a PF se deparou com um “extenso lapso temporal”, entre as fraudes e a comunicação formal à corporação, prejudicando a identificação de funcionários do Ministério que teriam alguma ligação com a organização investigada.
Fraudes aprimoradas
A PF só foi informada dos desvios em 2014 por meio de uma nota técnica da Controladoria-Geral da União (CGU). “O que tudo indica é que não existiu uma fiscalização efetiva, que permitiu essas duas décadas de desvios de recursos da Lei Rouanet”, destaca a delegada Melissa Maximino Pastor, que presidiu o inquérito. “Quando o Ministério da Cultura deu início à fiscalização dos projetos, em 2012, a associação criminosa começou a aprimorar as fraudes. A investigação demonstra isso empiricamente. Quando se inicia a fiscalização do órgão que libera e controla o recurso público as fraudes ganham sofisticação.”
Em 2013, o Ministério da Cultura emitiu uma Instrução Normativa restringindo a quantidade de projetos por pessoas jurídicas e pessoas físicas. Na ocasião, foram bloqueadas contas de três empresas do Grupo Bellini. “O Grupo Bellini, que até então estava com as contas bloqueadas, começa a se utilizar de mais empresas, em nome de funcionários, por isso essa quantidade de indiciados.”
A PF identificou nove empresas que fizeram parceria com o Bellini Cultural e outras três que auxiliavam o grupo nas fraudes, além de diversas pessoas físicas. Essa “estrutura de papel” obteve junto ao Ministério mais de uma centena de projetos. O relatório final da Boca Livre foi encaminhado ao Ministério Público Federal. O inquérito foi aberto no final de 2014 e seguiu para a Inteligência da PF em novembro de 2015, quando as investigações começaram a ganhar fôlego.
A Polícia Federal afirma que o Ministério da Cultura foi avisado das irregularidades, envolvendo projetos do Grupo Bellini e servidores da pasta, três anos antes dos investigadores receberem a denúncia. “Um rastreamento preliminar revelou indícios de adulteração de documentos, projetos extremamente similares, um projeto igualzinho ao outro, um dos dois não aconteceu”, relata Melissa.
Cantores famosos
“A falta de fiscalização permitiu a continuidade delitiva até a deflagração da operação, em junho de 2016”, afirma a delegada federal, que revela ter descoberto, também, uma “lei invisível do mercado cultural”, sob a qual produtoras teriam de oferecer ou aceitar exigências ilícitas de grandes empresas para garantir o aporte no projeto cultural. Ela ressalta que as empresas já possuem uma grande vantagem, que é a vinculação de um projeto cultural à sua marca sem custos – uma vez que, para as que tem um lucro real de até 4%, o dinheiro utilizado no patrocínio é abatido do imposto de renda.
Entre essas contrapartidas, segundo a PF, indiciados do núcleo central do Grupo Bellini contaram que empresas exigiam contrapartidas como, por exemplo, festas de final de ano com cantores famosos, em troca de apoio aos projetos. “A disputa era tão acirrada entre os produtores culturais que se não atendessem às solicitações não iriam conseguir aporte em nenhum projeto cultural”, assinala a delegada. “A investigações confirmaram isso. As grandes empresas tiveram inclusive a coragem de formalizar contratos de patrocínio com objetos ilícitos.”
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