Ministra acreana, que já saiu duas vezes por divergências com o presidente nos dois governos anteriores, está de novo em rota de colisão com ala desenvolvimentista
Tião Maia - A ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, a acreana Marina Silva, está de novo em rota de colisão com o Governo Federal e com seu chefe imediato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O mesmo clima de tensão registrado em outras duas vezes nos dois governos anteriores de Lula, em 2006, no primeiro, e em 2010, no segundo, quando surgiram divergências entre a acreana e a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff.
A causa das novas divergências agora é uma estrada que deveria ligar as cidades de Porto Velho, em Rondônia, e Manaus, no Amazonas, a chamada BR-319, cuja pavimentação seria de 877 quilômetros. A obra, embora reivindicada faz décadas pelas populações das duas cidades, é contestada por dirigentes de ONGS e de outras organizações ambientais parceiras e parceiros de Marina Silva. A estrada hoje se resume a um caminho esburacado e engolido pela mata, expondo a dualidade e a falta de consenso sobre o que fazer com uma das áreas mais sensíveis de toda a Amazônia.
Em tempo de recordes de queimadas e eventos climáticos extremos impulsionados pela queda da floresta, o projeto transformou a BR-319 na estrada da discórdia, opondo alas do próprio governo. Neste jogo de força, a tendência é que a corda estoure, mais uma vez, do lado mais fraco: o meio ambiente. As resistências, porém, não dão trégua.
O Comitê Gestor do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) acaba de incluir, nas prioridades do pacote, a pavimentação de um trecho de 52 km da rodovia, em território amazonense. Em setembro, o presidente Lula deu seu veredito. Sem meias palavras, Lula disse que quer a estrada de volta e que isso não é mais uma hipótese. “Vamos preparar o Estado, para que a gente possa entregar, definitivamente, a ligação entre Manaus e Porto Velho”, disse Lula, mandando um recado claro para dentro e para fora do governo: “É preciso parar com essa história de achar que a companheira Marina [Silva, ministra do Meio Ambiente] não quer construir a BR-319.”, disse, em recado à própria Marina.
Nos últimos anos, a BR-319 se tornou o bode na sala do Palácio do Planalto. Marina Silva tem posicionamento contrário à pavimentação da estrada. Pressionada por todos os lados, a ministra tenta adotar uma postura de cautela para segurar o projeto. Sem esticar a corda ao extremo, Marina defende a necessidade de se ter um “estudo baseado em dados e evidências científicas”, mas não para liberar a reconstrução da rodovia, e sim para “ter uma resposta definitiva” sobre sua viabilidade ou não. É algo bem diferente do que propõe Lula, o Ministério dos Transportes e o Ministério da Agricultura.
O impasse remonta a décadas. Construída entre 1968 e 1973, a BR-319 faz parte das investidas militares que rasgaram a Amazônia durante os anos que ficariam conhecidos como “milagre econômico”. A ligação das capitais de Rondônia e Amazonas se somava a outras vias que prometiam a “integração nacional”, como a Transamazônica (BR-230), que atravessou o país de leste a oeste, restando inacabada, e a Cuiabá-Santarém (BR-163), que partiu do Mato Grosso rumo ao Norte do país, chegando ao Pará.
Em seus primeiros anos de operação, a BR-319 chegou a ser plenamente transitável, com viagens regulares de carros e linhas de ônibus entre Porto Velho e Manaus. Nos anos seguintes, porém, a rodovia entraria em um crescente processo de abandono e, já em meados de 1988, apenas 15 anos após sua conclusão, estava completamente inviável, tomada pela vegetação que avançou sobre o asfalto.
Diversas tentativas ocorreram, com o propósito de reabrir a via, mas nenhuma avançou, devido à resistência ambiental e ao temor de que a BR-319 repetisse o cenário de devastação e invasões que tomou conta das demais estradas abertas pelos militares.
Entre os ambientalistas, o entendimento é o de que a estrada teve o desfecho necessário. “A reconstrução e asfaltamento do trecho do meio da BR 319 é um empreendimento que, hoje, não tem viabilidade socioambiental. Levará a uma explosão do desmatamento numa região que é marcada pela ausência do Estado. Sem garantia de governança regional, não há como licenciar esta obra”, diz Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima.
A especialista lembra que o próprio Ibama, órgão que ela já comandou, mostra em pareceres constantes no processo de licenciamento os sérios problemas que ela pode causar. “A licença prévia concedida pelo Governo Bolsonaro é nula. Atestou a viabilidade de um empreendimento inviável no contexto atual. A liminar concedida pela Justiça Federal suspendendo a LP é correta e juridicamente robusta”, afirma Araújo.
O fim do asfalto acabou estancando ações humanas em uma área sensível da floresta e evitou que a BR-319 repetisse o que hoje se vê ao longo de boa parte das estradas federais abertas nos anos 1970, obras que impulsionaram o desmatamento ilegal, a grilagem de terras e o garimpo, em meio à completa falta de estrutura e presença do poder público para fiscalizar e coibir os crimes.
Políticos locais e membros do governo afirmam, porém, que se trata de uma dívida social e que a população de Manaus e região está isolada do país, dependendo de um barco ou avião para deixar a capital do Amazonas. Hoje, os primeiros 200 km da rodovia, a partir de Porto Velho, possui asfalto em boas condições, até chegar a Humaitá (AM). Do outro lado da rodovia, a partir de Manaus, há outros 250 km em boas condições. O cenário muda completamente, porém, no chamado “trecho do meio”, (do km 250 ao km 656), que corta uma das áreas mais conservadas da região amazônica.
A retomada da rodovia sempre esteve nos planos de Lula, uma promessa que já tinha feito em seu segundo mandato, entre 2007 e 2010, dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), mas que não conseguiu cumprir. Dessa vez, porém, o núcleo do governo parece empenhado em concretizar a missão, nem que para isso dê andamento a ações polêmicas tomadas pela gestão de Jair Bolsonaro, marcada pelo esvaziamento do Ibama e da proteção ambiental.
Hoje, mesmo debaixo do guarda-chuva de Marina Silva, o Ibama, comandado por Rodrigo Agostinho, atua para defender o licenciamento da obra, rejeitando os argumentos de organizações civis e os próprios apontamentos já feitos pelo instituto, cobrando a revalidação da licença prévia que foi emitida em 2022. Nos últimos anos, o próprio Ibama alertou, em pareceres e vistorias, sobre os riscos de explosão do desmatamento na região, caso a pavimentação da BR-319 avançasse. Na Amazônia, a história mostra que a exploração predatória e gradual a partir da abertura de estradas é uma escola.
Após a abertura da rodovia, cresce a procura por terras, estimulando a grilagem. A fase seguinte é marcada pela construção de ramais e estradas particulares, abrindo “espinhas de peixe” ao longo da faixa central. Depois da retirada ilegal da madeira nobre, ocorre o plantio de mato para formação de pastagens e entrada do gado. O ciclo se fecha, com a busca de anistia para as invasões ilegais. É assim. Sempre foi.
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