6 de jun. de 2009

CONTO - SACI-PERERÊ



SACI-PERERÊ
Raimundo Rodrigues

Uma chuvinha irritante molhava a estrada seca. Recendia no ar o cheiro de terra. terra velha, sedenta, gulosa de água. O mundo ia apagando-se aos poucos. A noite tomava conta de tudo.
Atanásio não dava fé da chuva. Não via a escuridão que se aproximava, casando-se com a terra.
O cavalo, ruim de sela, trotava o seu trote frouxo de animal mambembe. Lerdo, o bicho parecia não ter pressa. E Atanásio não sentia o trote pesado do “Pimpão”. Negro Atanásio estava perdido no mundo enevoado de seus pensamentos.
Grandalhão, forte como um touro. Mas negro Atanásio, grandalhão, forte como um touro, montado no “Pimpão”, atolado nos seus pensamentos, chorava.
É que ele estava vindo da “rua” onde enterrara o Dito, o filho único, moleque de dez anos.
Não podia entender porque é que o seu negrinho se findara assim de uma hora para outra. Amanhecera bom, rindo aquele riso gostoso, mostrando a brancura dos dentes. Aí pelo meio-dia, na roça, queixara-se de dor de barriga. Dor de barriga besta; o guri defecava o puro sangue. Não houvera tempo de aplicar os remédios que o doutor-médico receitara. Fora aquilo. Aquele febrão medonho. A mulher gritando feito louca, arrancando a carapinha. Parecia pesadelo. Não, não era possível que seu negrinho houvesse morrido. Já não bastavam as canseiras da vida? Não chegavam as aperturas, a miséria? Será que tinha urucubaca? E dizer que havia feito tantos castelos... Tinha esperança de ver o filho bem arrumado na vida. O moleque era inteligente, todo mundo dizia. Dois ou três meses de aula com mestre Chico fora o suficiente para o negrinho aprender a ler e escrever. Mestre Chico dizia que o menino ia dar coisa... Era assim. Aquele negócio de morrer criança era coisa corriqueira. Estava feio assim de fazer quarto a anjinho. Menino da roça não medrava fácil não. E o doutor-médico com aquela conversa de alimentação, de vitamina. Que diabo era vitamina? O doutor-médico falava difícil, bonito. A prosa dele era bonita. Lá isto era. Mas quem é que podia fazer o que o doutor-médico mandava? Alimentação, vitamina, calçado. Olha aí, ele dizia que o menino tinha que andar calçado. Proseado jeitoso, bonito... Mas tudo era caro e o ganhame era pouco, tiquinho. Não dava pra nada. Planta na meia. Vivia endividado, encalacrado. Devia os olhos da cara ao patrão. E não havia jeito de pagar a conta; entrava ano, ano saía e a bandida da conta não descia. Trabalhava feito burro-de-carga. Nunca o sol o encontrava na cama... O doutor-médico falava bonito. Mas que valia a conversa dele? Seu Lobão não falava bonito não. Mas, com ele, era ali, no duro. Cabra que tretasse entrava no rabo-de-tatu. Tivera até o descaramento de lhe dizer nas bochechas que negro não era gente. Se ao menos tivesse outro filho... Dito era filho único. E Dito morrera. Vida danada. Porqueira! Merda de vida!...
“Pimpão” foi afrouxando o passo. Atanásio percebeu que o animal estava quase parando. Catucou-lhe as esporas na barriga. Lembrou-se que a mulher estava meio pateta. Sacudiu a cabeça, procurando espantar os pensamentos.
Não havia jeito. O negrinho não lhe saía dos miolos. Via-o a seu lado, na roça, dando duro no rabo do guatambu. E olhe que o molequinho era bom de enxada. Trabalhava feito gente grande. É... o seu negrinho era bom de serviço. Depois, à noite, lá vinha ele com aquele negócio de histórias.
- Pai, conta aquela do Saci-Pererê!
Todas as noites era a mesma coisa. E agora? como seria? Onde andaria o seu negrinho? Para quem iria contar as histórias do Saci, do Mapinguari, do Matinta-Pereira, da Mãe-d’Água?
A cabeça doía. Era uma dor esquisita... Estava sentindo uma angústia, um mal-estar, o corpo todo doendo.
Fez um esforço danado, procurando aprumar o esqueleto.
- Pai, conta aquela do Saci-Pererê...
O cavalo começou a galopar estrada fora. Atanásio metia-lhe as esporas na barriga, arrancando sangue.
- Pai, conta aquela do Saci-Pererê
Era a voz dele. Seria? Não, não era possível...
Passou a mão pela cara como que querendo espantar uma visão.
A carinha preta do menino estava ali, no escuro, rindo aquele riso bom, mostrando a brancura dos dentes.
O coitado do “Pimpão” galopava, as esporas enterradas nas sua ilhargas.
Atanásio ria alto. Chorava gritando, gargalhava, chorando.
A cabeça doía. Estourava de doer.
Não, o menino não morrera. Que menino? Que menino que nada. Ele era o menino. O menino era ele. Ele era o negrinho que ria gostoso, mostrando a brancura dos dentes. Precisava chegar logo a casa, pedir ao pai para lhe contar uma história. História de quê? O Saci era ele. Ele era o Saci-Pererê, a Mula-Sem-Cabeça, o Mapinguari, o Matinta-Pereira...
Todas as tardes, boquinha da noite, um preto alto, grandalhão, costuma perambular pela estrada, espantando os viandantes.
- Pai, conta aquela do Saci-Pererê!...

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