Raimundo Rodrigues
Velhinha Inácia Rosenda está tão velha, tão cheia de anos que até nem sabe dizer quantas eras tem.
É muito velha, a velhinha Inácia Rosenda. A carapinha está branca como capucho de algodão. Qual, a carapinha de negra velha Inácia Rosenda é muito mais branca que capucho de algodão. Magrinha, pequena, engelhadinha, ela é a pessoa mais querida por aquela multidão de lavradores que trabalham a terra fértil da fazenda Flor-da-Serra, aquela fazendona, talvez a maior fazenda daqueles bredos.. Era ela quem lhes cortava o umbigo dos filhos, pois foi a mais famosa parteira que passou por aqueles bredos. Só ela sabe aquelas rezas fortes que curam os males do corpo e curam os males do espírito.
Olhem, está ali, aquecendo-se ao sol, sentada na banquinha, na porta de seu rancho, nesta manhã úmida e cheia de odores.
Pende-lhe a cabeça sobre o peito magro. Naquela posição, ela dá asas ao pensamento. Ela ouve falar em colheitas abundantes, porque abundantes têm sido as chuvas. Ela ouve os homens falando em fartura. Mundão de café, de arroz, de milho, feijão. Ela ouve os homens falando em fartura. O coração pequenino, cansado de tanto bater, mirrado de tanto sofrer, está alegrinho, mais cheio, mais vivo, batendo melhor: tum-tum...tum-tum. Fartura para os pobres que os pobres todos são seus irmãos.
E Inácia Rosenda está ali, pequenina, encarquilhada, cabeça derreada sobre a tábua do peito. Parece uma criança, uma velha criança, negra velha Inácia Rosenda.
Ela já foi moça, bonita, roliça. Quando andava, sacudia as ancas, dengosa, faceira. Nasceu ali mesmo, filha de escravos na era de 72. Negra velha Inácia Rosenda não mais se lembrava que havia nascido na era de 72. Dono de Flor-da-Serra, naquele tempo, era Domingos Machado, que a herdara do pai, paulista taludo de Piracicaba.
Quando alguém lhe pede que conte histórias de sua vida, ela joga o olhar para longe, para muito distante, na penumbra do tempo, perdida nas recordações.
E ela conta histórias. Histórias do cativeiro, histórias de negros fugidos, histórias bonitas de negros bonitos.
Ficava pensando, viajando pelo tempo. Tudo era passado. Restava o que do passado? Ela mal tinha o presente... via perto demais o futuro.
O mundo estava tão diferente... Ficava pensando... pensando... O mundo estava diferente, só a miséria continuava a mesma. O mundo estava virado. Tudo tão demudado... E ela, fraca, cansada. Tantos trabalhos, tantos sofrimentos, tantos desenganos. Como conseguira viver tanto, era o que não sabia. Talvez que aquilo fosse arte de seus Orixás; nunca se esquecera de Xangô, nem de Oxossi, nem de
Oxum. Quanta coisa não viu, quantas palavras não ouviu, meu Deus... A terra estava diferente, até o céu havia mudado. .
A fazenda espichara, o número de lavradores aumentara; o senhor de agora era muito mais rico que os outros senhores. Todos diziam. A Sinhá era boa, bem melhor que as outras Sinhás. Estava cansada, cansada e sofrida. Era preciso sair para a grande caminhada final. Caminhar neste mundo velho de Deus, já não mais podia; as pernas, coitadas, mirradas e finas, estavam imprestáveis. Era preciso fazer a grande caminhada, ir para a pátria dos seus orixás. O mundo era mundo, não tinha conserto. O mundo ia acabar - chegou a mil... de dois mil não passará - que Deus devia de andar farto de tanta miséria. Então, ela não via? Anos e anos, anos a fio? O trabalho pesado, a derruba, a capina, a colheita, o trabalho. E os homens da terra sofrendo, suando, pagando pecados. Os homens da terra viviam de raiva, de ódio, que a raiva e o ódio também alimentam. Futuro... falavam em futuro, falavam em amanhã. Mas, que era o futuro, que era o amanhã? Ela era o passado, o presente e o futuro também. Os homens da terra eram homens escravos. Os pretos, os brancos, os bonitos, os feios, eram todos escravos. A terra era flor, flor venenosa, flor de veneno. Os homens falavam em futuro, falavam em amanhã. Ela conhecia o passado, o hoje, o amanhã. Ela vivera sempre esperando o amanhã. Os amanhãs chegavam e eram sempre iguais. Era preciso que os orixás se lembrassem dela. Estava tão cansada, precisava descansar...
O sol avança no céu, que ele é o senhor absoluto daquelas paragens. Quem é que se atreve a postar-se em seu caminho, quando ele faz seu passeio de todos os dias? O calor aumenta.
Velha negra Inácia Rosenda estremece um pouquinho, velha negra Inácia Rosenda adormece, adormece e acorda na Pátria dos Orixás, bonita, faceira, dengosa e brejeira, como no seu tempo de moça...
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