Moisés Diniz *
A minha adolescência e parte da minha juventude, eu passei dentro de uma congregação religiosa. Os dias mais substantivos da minha vida. E o que tem a ver a minha adolescência religiosa com “as boas intenções de que o inferno está cheio”?
(foto a Gazeta)
Apesar de abraçar uma fé, uma visão de mundo que não se testa, imaterial, intangível, pós-morte e espiritual, os nossos dias eram integrais, fecundos e ocupados por muita leitura e suor nas hortas e nas quadras de futebol.
Isso significa dizer que, enquanto a gente buscava ver a face secreta de Deus, na sua infinita espiritualidade, nós tínhamos que enfrentar problemas humanos, concretos e cotidianos.
Os pequeninos e terríveis piuns nas hortas, o sol escaldante, o frio nos banhos das 5 horas da madrugada e ainda enfrentávamos uma sexualidade reprimida em pleno vigor juvenil.
Ainda lembro que, uma vez por semana, substituíamos o leite por chá de capim santo (Cymbopogon citratus) no jantar, com pão, farofa de ovos e verdura colhida de nossa própria horta.
Nossos superiores diziam que era um ato de desprendimento material, vinculado ao nosso futuro voto de pobreza que, junto com a castidade e a obediência, nos tornavam verdadeiros discípulos de Jesus.
Mas tarde, meio como desencanto, descobri que aquele chá servia para refluir nossos instintos sexuais, com as suas propriedades febrífugas, sudoríficas, analgésicas, calmantes, antidepressivas, diuréticas e expectorantes. Um excelente chá para acalmar o fogo da juventude.
Quando leio agora os horrores praticados por sacerdotes na Europa e nos Estados Unidos, eu fico consternado e lembro daquele tempo em que, para controlar a nossa sexualidade, era preciso beber chá de capim santo como se fosse um suplício.
Da vasta literatura que tive acesso, ainda lembro das biografias de veneráveis e santos da Igreja que venciam os dias e as noites com seus instrumentos de autoflagelo, de martirização do corpo.
Eles sonhavam em se aproximar da perfeição espiritual de Jesus, capaz de enfrentar as dores inimagináveis da cruz, instrumento de suplício que deu origem ao cristianismo.
Asssim, os religiosos buscavam formas diversas de combater e abater a sua sexualidade. Somente quem viveu aquela experiência, como uma passagem secreta entre o inferno e o céu, pode julgar o que se passa de dor, de desejo, de culpa e de aflição dentro dos muros dos mosteiros e dos conventos.
O que esses padres fizeram com aquelas crianças é tão hediondo que nenhuma punição terrena os alcançará. Como eles devotaram as suas vidas na busca pela salvação, a maior dor que eles sentirão será o fogo eterno da perdição no mais profundo dos infernos.
Então, eles sentirão a dor daquelas crianças, o seu desespero e a sua aflição infantil. Será o momento desses vermes de vestes brancas perceberem o sofrimento daquelas crianças surdas e mudas, daqueles meninos órfãos.
Eu que vivi aqueles anos dentro de uma casa religiosa, sei que esses padres nunca mais terão paz, os vivos e os mortos. A sua consciência os acordará nas madrugadas para ouvir o choro silencioso daquelas crianças. Eles não verão o rosto de Deus.
De parte da sociedade, das forças vivas do mundo laico, cabe exigir cadeia para esses padres. Que todo novo seminarista saiba, depois dessas punições da justiça dos homens, que nenhum crime de pedofilia ficará impune dentro dos mosteiros e dos conventos.
Quanto à Igreja em si, caberá discutir questões internas milenares, como o celibato e o controle social das atividades religiosas. Há verdadeiros tabus nessas questões e somente a Igreja será capaz de vencê-los.
Em 1123, foi declarada a nulidade de casamentos de padres. Mulheres, animais fêmeas, adolescentes belos e até instrumentos musicais foram proibidos nos mosteiros, a fim de diminuir a tentação aos religiosos.
Há opiniões para todos os gostos sobre a influência do celibato na consecução desses crimes de pedofilia. O que se destaca é a quantidade de casos cometidos por padres celibatários e o tempo em que esses crimes ficaram acobertados.
Quanto ao celibato, não entraremos no mérito do debate, por sua profundidade e suas ditas razões teológicas. Ficaremos na questão da ‘cultura do silêncio’ que envolve esses crimes.
A Igreja não pode continuar escondendo crimes contra crianças e achando que ela mesma será capaz de punir os seus padres pedófilos. Já provou que não é capaz, que padece nas mãos do corporativismo santo e do silêncio dos muros religiosos.
A sociedade precisa ter instrumentos de controle da atividade religiosa, porque a busca de Deus se dá através do corpo humano e de seus instrumentos físicos. Enquanto esses padres falavam o nome de Deus na homilia, eles abusavam de crianças nos fundos da sacristia.
O que a sociedade não pode e nem deve controlar é a profissão de fé das nossas igrejas. Esse é o sentimento que se reflete nas centenas de artigos e ensaios que brotam da indignação de cristãos e não cristãos.
Eles exigem um posicionamento mais explícito do Papa Bento XVI e dos seus cardeais. Eles precisam deixar claro que, além das punições aos padres pedófilos, a Igreja não permitirá mais esses crimes silenciosos dentro de seus muros sacrossantos. Esse é o clamor que se ouve nas redações dos jornais, nas escolas e universidades e nos grupos que formam opinião.
Mas, também ouvimos um clamor menor, não menos importante ou sólido. Não aceitaremos que os crimes desses padres pedófilos sejam usados para julgar a Igreja.
As conquistas milenares da Igreja Católica aqui no Ocidente não podem ser destruídas junto com esses crimes. Os padres pedófilos devem ser punidos e segregados do nosso convívio e os milhares de padres e religiosos, que não têm nada a ver com essa lama, devem ser respeitados e apoiados na sua fé e na sua opção de vida.
Milhões de crianças pobres e doentes, pelo mundo afora, foram protegidas, alimentadas, educadas e salvas por esses homens e essas mulheres, nos seus mosteiros, nas suas escolas e nos seus conventos. Eles dedicaram as suas vidas consagradas à vida frágil e pequenina do seu semelhante.
Mulheres pobres, mulheres prostituídas, povos indígenas segregados, ciganos, sem-terras e sem-tetos, sem-empregos e moradia, sem-nada. Todos esses homens e essas mulheres tiveram a proteção dos missionários, de padres, irmãos e freiras, na sua apostólica dedicação.
Por isso não cabe nenhuma malandragem jornalística ou política de misturar essas mulheres e esses homens santos, na sua vida pessoal e apostólica, com esses padres pedófilos. Esses últimos não representam a Igreja.
Quanto ao Papa Bento XVI, em que pese a sua concepção conservadora de mundo, ele é responsável por padres e bispos de todos os matizes ideológicos, daqueles que defendem ditaduras e donos de terras àqueles que são assassinados por defender os mais pobres, os sem-teto da Terra.
Ele representa o homem na sua beleza e na sua perversão. Representa cardeais comprometidos com o que há de mais sórdido na condição humana e o que há de mais atrasado e mais indigno no mundo da política e das finanças.
Mas, nunca é demais lembrar, que Bento XVI também representa milhões de homens e mulheres que acreditam na imortalidade da alma e que professam uma fé inquebrantável, capaz de realizar imensos sacrifícios para mantê-la viva e esperançosa.
Não considero plausível e nem correto do ponto de vista da ética atacar a Igreja nesse momento de dificuldades em que ela se encontra. Fica meio parecido com a hiena, que ri na sua animalidade, enquanto destroça os pedaços apodrecidos do animal putrefato.
Como se, ao redor, não tivesse vida sadia e abundante, ar fresco e rosas, além daquele odor e daquela cena dantesca. A Igreja permanecerá pelos séculos dos séculos, apesar desses vermes que devoraram crianças.
Acredito que Bento XVI saberá, nesse instante difícil para a sua Igreja, ser mais padre do que político. Creio que ele saberá distinguir o que é sadia exigência da sociedade, clamando punição aos padres pedófilos, e o que seja malandragem de quem quer golpear a Igreja e a sua história.
O velho Papa saberá que os cristãos e os seus amigos estão, aqui fora, apreensivos e solidários, exigindo que se separe o joio do trigo, mas que não se jogue o lixo para dentro dos muros. Porque “de boas intenções o inferno está cheio”.
Moisés Diniz é autor do livro O Santo de Deus, e deputado estadual pelo PCdoB do Acre.
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