21 de out. de 2024

Endividamento do governo cria oportunidades na renda fixa; títulos privados já pagam IPCA+9%

Entre os títulos públicos, as taxas passam de IPCA+6,5%. Veja a diferença que juros fora da curva fazem no longo prazo

Ouroboros, a cobra que se auto-consome – igual o governo com a dívida pública


Por Alexandre Versignassi - Quando Lula subiu a rampa do Planalto para começar seu terceiro mandato, em janeiro de 2023, a dívida do governo estava em R$ 7,2 trilhões. Hoje, ela soma R$ 8,9 trilhões, um salto de 23,6%. Mais detalhes adiante, porque a ideia aqui não é discutir macroeconomia a fundo. É mostrar o que uma dívida pública rampante significa para a sua vida financeira.

Ponto número um: quem tem dinheiro em títulos do tipo IPCA+ (ou em fundos carregados desses papeis, como planos de aposentadoria) está vendo sua renda fixa virar a chave para o modo perda fixa, já que a situação fiscal, a dos gastos públicos, está reduzindo o valor desses papeis.

Só nesta semana, até quinta-feira, quem tem IPCA+2045 viu o saldo cair 3,46%. Em meros dois meses, desde meados de agosto, a perda é de 9,35% – algo que soaria alarmante até no mundo da renda variável. No ano, já são 11,45% no vermelho.

Isso acontece porque os juros dos títulos estão subindo. E quando os juros sobem, o valor de mercado desses papeis vai pelo caminho contrário. Cai.   

O que determina o juro de um título do tipo IPCA+ é o preço que você paga por ele – porque o valor final de cada um no vencimento é sempre o mesmo (R$ 4,3 mil corrigidos pela inflação). Se o valor de mercado um título IPCA+ cai, por exemplo, de R$ 1,33 mil a unidade para R$ 1,18 mil, significa que o juro dele subiu de 5,5% para 6,6% – foi o que aconteceu entre janeiro e outubro deste ano.

Mas esse copo tem um lado meio cheio. Quem tem bala para investir no IPCA+ neste momento, encontra oportunidades completamente fora da curva. 

Para dar uma ideia: boa parte dos fundos de aposentadoria têm como objetivo fazer IPCA+4% no longo prazo. Não é pouco. Se você colocar o dinheiro equivalente a um Hyundai HB20 (R$ 100 mil) e deixar até 2045 sob um rendimento assim vai tirar uma quantidade de dinheiro que hoje compraria um Jeep Compass (R$ 225 mil – corrigidos por 21 anos de inflação, naturalmente). 

Isso com IPCA+4%. Só que agora o título com vencimento em 2045 está pagando IPCA+6,6% – no momento em que este texto é escrito, mais precisamente, 6,57%.

Debaixo de uma saraivada de juros desse porte, tudo muda de figura. O HB20 se transforma numa BMW X1 (R$ 367 mil corrigidos); ou seja lá qual carro for o carro equivalente a esse na realidade de 2045.  

É isso: entrar em IPCA+ a 6,57% significa trocar um Compass por um X1 – na comparação com quem entra a 4%.  

Não é só isso. No mundo dos títulos privados, que pagam o juro dos públicos mais um prêmio, já tem empresas pagando IPCA+9%. É o caso de debêntures da Vamos e da Movida disponíveis na plataforma da XP – com vencimentos em 2031 e 2032.

E agora fica a pergunta: porque tudo isso está acontecendo? 


O preço de controlar a inflação

Começa com o seguinte: os gastos públicos jogam mais dinheiro na economia. Mas… se a quantidade de dinheiro em circulação cresce mais rápido que geração de produtos e serviços a serem comprados com esse dinheiro, temos inflação. 

Ela só está sob controle (em 4,4%, ainda abaixo do teto da meta) por conta da taxa de juros. Uma Selic lá no alto torna o dinheiro mais caro no mercado de crédito. Aí menos empresas e menos pessoas pegam empréstimos. Isso enxuga dinheiro da economia, e segura as altas nos preços.

Com os gastos públicos em modo sem freio, porém, esse aspirador de dinheiro chamado Selic precisa ficar ligado a toda. Por isso o Banco Central voltou a aumentá-la – para 10,75%; e com viés de alta. 

Com a inflação em 4,4%, o que temos aí é um juro real, acima do IPCA, em seis e poucos por cento – com  o mercado prevendo que ele deve ficar nessa faixa por anos. É por isso que os títulos IPCA+ passaram a pagar mais de 6%. 

Ao pressionar o valor de mercado dos títulos de inflação, a Selic obriga o governo a pagar juros mais altos nos títulos novos que lança no mercado. Isso encarece a rolagem da dívida pública. Não só isso – porque a dívida brasileira tem uma característica especialmente tóxica, que vamos ver a seguir.


Ouroboros fiscal 

O governo faz dívida de três maneiras: com títulos prefixados, que pagam uma porcentagem definida e mais nada; com títulos de inflação, que rendem o IPCA mais um choro (ou seja, são parcialmente prefixados), e com os títulos Tesouro Selic, que pagam… a Selic, oras. Esses são os pós-fixados. 

Em tempos de juros em alta, quanto maior a parcela de juros pós-fixados, pior para o governo, porque a cada subida na Selic a dívida cresce automaticamente. O governo sabe disso. Então, historicamente, evitou ter uma parte grande demais de sua dívida atrelada à taxa básica da economia.

Em 2014, por exemplo, só 10% da dívida era de Tesouro Selic. Agora, são 47% – em grande parte porque o mercado passou a duvidar dos prefixados. Um prefixado que pague 10% ao ano vira lixo se a inflação ou a Selic passarem disso. Um IPCA+3% ou +4%, idem. O Tesouro Selic não tem esse problema. Se a inflação chegar, digamos, a 10%, a Selic provavelmente acabará elevada acima disso. Esse título, então, é o mais seguro para quem investe.

E o mais perigoso para quem emite. Com metade da dívida pública atrelada à taxa básica, cada 1 ponto percentual a mais na Selic significa um gasto extra de R$ 50 bilhões por ano para o governo – o cálculo é do Banco Central. 

O que temos aí, então, é um Ouroboros fiscal. Ouroboros é a cobra da mitologia grega que come o próprio rabo (o próprio corpo, no caso). Por um lado, o animal se nutre. Por outro, vai deixando de existir.

É que o governo amplia os gastos sem contar com terreno para ampliar a receita. Na outra ponta, não apresenta planos sólidos para cortes de despesas. Nesta semana, Lula deixou claro que pretende ampliar a faixa de isenção do IR sobre salário – dos atuais R$ 2,8 mil para R$ 5 mil. 

A medida é bem-vinda do ponto de vista social, mas inflacionária; e corta uma fonte de renda de um governo que só vê sua dívida aumentar. Ela começou 2023 em 73,5% do PIB. Agora, está em 78,5%. Há 10 anos, eram 56% – considera-se até 60% um patamar saudável. O Brasil está no caminho oposto, como se vê. O FMI prevê 93% para 2029. 

E qual o problema? O problema é que começa a surgir uma desconfiança quanto à capacidade de solvência do governo. É aí que a cobra vai se consumindo. Quanto mais dívida, mais juros para atrair investidores ressabiados. E quanto mais juros, mais dívida.

Não significa que o governo vá dar calote um dia – porque existe o último recurso, que é o de imprimir dinheiro para pagar a dívida.

Só que seria exatamente igual a dar um calote. Emitir trilhões de reais para fechar as contas causaria uma hiperinflação.

E isso o Brasil conhece bem. A inflação acumulada entre 1953 e 1995, o primeiro ano cheio do real, foi de 19.509.846.374.237.060%. Dezenove milhões de bilhões por cento. 

Num cenário assim, a própria moeda decai para a irrelevância – como era nos anos 1980, quando investir era guardar dólares em casa. E aí mesmo os generosos IPCA+ de hoje iriam perder para qualquer investimento em moeda forte.  

Esse é o risco. Improvável, pois o amadorismo econômico do século passado não existe mais. Mas não impossível.  

Boa sorte para todos nós.

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