31 de mar. de 2014

MARCHA PARA A GUERRA QUE NÃO HOUVE



Juiz de Fora estava de prontidão havia 18 dias

Fábio Fabrini - O Estado de S.Paulo
Joaquim Gomes de Faria tinha três meses de farda quando recebeu o chamado do comandante de sua companhia e a ordem de partir imediatamente. Logo assumiu o volante de um caminhão Studebaker dos anos 1940, carregado de mantimentos, munições e recrutas como ele. Ao passar em comboio pelas ruas de Juiz de Fora, acenou para a mãe, Margarida, em prantos pelo filho "a caminho da guerra". Nas palavras do general Olympio Mourão Filho, chefe das tropas rebeldes em Minas, estava em curso naquele 31 de março de 1964 uma marcha de "soldadinhos" de 19 anos e material escasso.

Diários associados de Juiz de Fora - 7/4/1964
Tropas do general Olympio são recebidas por moradores 
de Juiz de Fora 7 dias após o golpe
No 10.º Regimento de Infantaria (RI) da cidade, os militares estavam de prontidão havia ao menos 18 dias, desde que o comício pró-reformas do presidente João Goulart na Central do Brasil inflamara os ânimos políticos à esquerda e à direita. Faria dormia no quartel, retornando para casa aos fins de semana. Dada a ordem para a arrancada, os soldados retiraram dos uniformes as "biribas" de identificação. A maioria subiu em ônibus emprestados pelos empresários da cidade, na falta de veículos militares.

Sem saber se veria dona Margarida novamente, Faria seguiu pela Estrada União Indústria às 12h30, rumo ao Rio de Janeiro. Voltaria dias depois, nos braços de uma classe média eufórica e sem nenhuma gota de sangue na farda. "Estava ali para matar ou morrer, mas foi uma ‘guerra’ sem nenhum tiro", lembra o ex-soldado, 50 anos após participar da marcha que desencadeou a deposição do então presidente, mas cujos embates mais decisivos se deram, na prática, ao telefone, entre os generais que protagonizaram o golpe.


O "soldadinho" Faria é hoje advogado e dono de uma loja de doces em Juiz de Fora. Em 1964, estampava foto da revista Manchete publicada em 11 de abril. Na imagem, de mosquetão em punho, ele corre à frente de um grupo de soldados no Maracanã, local de acantonamento do Destacamento Tiradentes, como foi chamada a coluna que partiu de Minas.

Faria conta que a vanguarda da coluna de Mourão, nitidamente desaparelhada, procurou pontos privilegiados nas montanhas para rechaçar um eventual revide de tropas pró-Goulart. Canhões de tiro rápido foram posicionados no caminho e os soldados receberam ordens para cavar trincheiras.

Dinamite. O plano original, descrito pelo general em suas memórias, era partir na calada da noite, tomar o QG do Exército no Rio, a 189 km dali, e dar o bote em Goulart no Palácio das Laranjeiras com um só pelotão, coroando uma "vitória rápida e completa". Porém, no fim da tarde do dia 31, 6 horas após o início da arrancada, a tropa estacionou na ponte do Rio Paraibuna, na divisa de Minas com o Rio, a apenas 30 km de Juiz de Fora. "Um colega se dependurou na ponte, colocando dinamite. Ela foi toda minada, para ser detonada caso as tropas do Rio não aderissem", revela Faria. "À noite, chegaram os blindados e ficamos cheios de moral: ‘Agora podem vir até os yankees que a gente põe para correr’."

Vieram mesmo foram os tenentes do 1º Batalhão de Caçadores, em Petrópolis, unidade mais próxima dos rebeldes, e acertaram na madrugada do dia 1º a adesão ao Destacamento Tiradentes. Ao amanhecer do dia 1.º, juntou-se ao movimento o 1.º Regimento de Infantaria, do Rio, principal unidade escalada pelo governo para a reação. "Para mim, foi um choque quando as viaturas deles passaram para a nossa retaguarda. Só tinha carro bom" , lembra o ex-recruta. "A coisa foi engrossando. Aí, sim, começou o deslocamento."

O Studebaker passou por Três Rios. Quando os recrutas estavam perto de Areal, a 70 quilômetros da capital fluminense, Goulart, vendo a queda de seu aparato, já partira do Rio para Brasília, de onde seguiria para o Sul, último refúgio antes do exílio. À tarde, o general Luís Tavares da Cunha Mello, comandante da operação para rechaçar os golpistas, acertou com o general Antônio Carlos Muricy, do Destacamento Tiradentes, um recuo com 1 hora de retaguarda.

"Um jipe branco ia para lá e para cá, fazendo comunicação. Aí o coronel Everaldo (tenente-coronel Everaldo José da Silva, do 10.º RI de Juiz de Fora) mandou avisar ao outro lado: ‘Vou dar um tempo e diga ao seu comandante que em 1 hora estamos nos deslocando para Areal com todo o comando do destacamento", recorda o capitão Cupertino Guerra, na época um recruta de 19 anos. Em 31 de março de 1964, ele recebeu ordem para juntar o material de acampamento e partir. Só no meio da marcha, se deu conta de que era um "revolucionário". Aviões da Força Aérea Brasileira despejavam panfletos "falando da rebeldia do povo mineiro". "Não sabia que aquilo era uma ‘revolução’, ninguém falou nada", conta o ex-soldado da 2ª Companhia de Fuzileiros. "No caminho é que começou o ‘zum-zum- zum’," O capitão se alistou no Exército no mesmo dia de Faria, fez carreira e hoje está na reserva. Para ele, é positivo o saldo do regime militar, apesar da tortura, da censura e dos expurgos. "Fui na marcha por obrigação. Hoje, iria de novo como voluntário. Se houve excessos, foi feito como deveria", avalia ele.

No Estádio do Maracanã, Cupertino foi um dos que ouviram o discurso de Muricy, que se gabava da "vitória". "O homem enchia a bola da gente: ‘Vocês poderiam até voltar, mas o povo carioca só confia nas tropas mineiras’."

Na "revolução", o capitão ouviu só um tiro, dado sem querer por um soldado que tinha fama de atrapalhado. Já Faria diz que o único colega de farda que pediu para não marchar e ficar em Juiz de Fora, por ser "arrimo de família", ironicamente morreu semanas depois da queda de Goulart, vítima de um disparo acidental dentro do quartel. "Foi uma guerra que não existiu", resume o ex-soldado.

‘Esperávamos alguma resistência’.  Então tenente que marchou para o Rio em 1964, o general da reserva Marco Antônio Felício compara o retorno das tropas de Olympio Mourão a Juiz de Fora às cenas da libertação da França pelos americanos na 2ª Guerra. "Foi uma volta triunfal. A cidade cheia, as pessoas nos agarrando nas ruas", descreve. As fotografias do dia 7 de abril mostram Mourão e seu inseparável cachimbo em desfile pelas ruas da cidade, sendo assediado pela população com seus soldados. "Minas, mais uma vez, comanda o movimento em defesa da democracia", registrou o Diário Mercantil, de Juiz de Fora, que anunciava o retorno das "tropas da liberdade". "No comboio de volta é que a gente se deu conta: o povo beijava, se jogava nos carros. Quando colocávamos a farda, não nos deixavam pagar nada", lembra o ex-recruta Cupertino Guerra.

Naqueles dias, o então tenente Felício integrava o Grupo 105, unidade de artilharia que formou a vanguarda da marcha de Mourão. "Estávamos de prontidão, aguardando a evolução dos acontecimentos", conta ele. "Não sabíamos que era uma preparação para decisão de tal naipe, mas sabíamos que o País estava ladeira abaixo e que o Exército não ia permitir a continuidade daquilo."

Felício diz que a marcha chegou a ser confundida inicialmente com um movimento comunista por tenentes que vinham no sentido contrário e que aderiram, "ao saber do que se tratava". No caminho, testemunhou reunião de Mourão com alguns oficiais, na qual reclamava do tênue engajamento do governador de Minas e chefe civil do golpe, José de Magalhães Pinto. "Saiu um manifesto do Magalhães naquele dia, mas ele não foi aceito pelo Mourão. Ele disse, junto ao (Rio) Paraibuna, que queria algo mais incisivo de apoio."

No Rio, previa-se batalha com os fuzileiros navais sob o comando do almirante Cândido da Costa Aragão, aliado do presidente João Goulart, o que não ocorreu. "Não esperávamos uma resistência feroz, mas alguma", recorda Felício. "Goulart teve o mérito de reconhecer que resistir seria um combate entre irmãos."


Felício é hoje candidato à presidência do Clube Militar. Integra a chapa o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-membro do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), acusado de tortura. "Com muita honra", frisa o general, acrescentando que Ustra é um "defensor da liberdade que usufruímos".Autor de manifesto dos militares da reserva contra a revisão da Lei da Anistia em 2012, Felício é um dos críticos mais ativos da Comissão da Verdade, e uma das vozes que ecoam o radicalismo da caserna.

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