Em longa viagem à Amazônia, o escritor se depara com os mesmos brasileiros de Os Sertões. Desta vez como migrantes, trabalhando nos seringais
revistadehistoria/Nísia Trindade Lima - A geografia sugere um contraste inconciliável: a árida caatinga e a exuberante floresta amazônica parecem viver realidades isoladas uma da outra.
Mas a ocupação humana tratou de aproximá-las. Expulsos pelas secas, sertanejos nordestinos foram atraídos para a Amazônia pelo ciclo da borracha a partir das últimas décadas do século XIX. E em 1904, apenas dois anos após a publicação de Os Sertões, o autor da mais profunda obra sobre a vida daquela gente se deparou com seus personagens imersos em um novo contexto.
Mas a ocupação humana tratou de aproximá-las. Expulsos pelas secas, sertanejos nordestinos foram atraídos para a Amazônia pelo ciclo da borracha a partir das últimas décadas do século XIX. E em 1904, apenas dois anos após a publicação de Os Sertões, o autor da mais profunda obra sobre a vida daquela gente se deparou com seus personagens imersos em um novo contexto.
Euclides da Cunha foi enviado à Amazônia após ser designado chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. Criada pelo barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores, a missão tinha o objetivo de elucidar dúvidas relativas às fronteiras entre Brasil e Peru. Mesmo após a cessão do território do Acre pela Bolívia, assegurada pelo Tratado de Petrópolis (1903), eram frequentes os conflitos armados entre seringueiros brasileiros e extratores de caucho (um tipo de seringueira) peruanos, nos vales dos rios Juruá e Purus.
O escritor partiu para a região em dezembro de 1904. Após visitar Belém, seguiu para Manaus, cidade agitada, descrita por ele como uma “Meca tumultuária”. Uma série de obstáculos adiou o início das atividades da Comissão, que após três meses enfim percorreu a calha do Rio Purus de abril a outubro de 1905, em meio a muitas dificuldades. Saindo na época da vazante dos rios, eles tiveram que fazer grande parte do percurso a pé, sem mantimentos suficientes e enfrentando doenças como a malária.
Quando foi escalado para chefiar a Comissão, Euclides estava sem emprego fixo, colaborando com os jornais O Estado de S. Paulo e O Paiz, no Rio de Janeiro. Foi nessas folhas que escreveu pela primeira vez sobre a Amazônia e os problemas de fronteira entre Brasil e Peru. Referia-se, sobretudo, à necessidade de os peruanos chegarem ao Atlântico, o que motivara os conflitos diplomáticos. Em “Contra os caucheiros”, publicado em 22 de maio de 1904 em O Estado de São Paulo, afirmava ser equivocado o envio de sucessivos batalhões do Exército brasileiro para o Alto Purus. Para ele, os migrantes sertanejos seriam a força capaz de garantir a integridade do território amazônico.
No artigo “Entre o Madeira e o Javari”, publicado uma semana depois, retomou o tema, agora sob um prisma político. Defendeu um trabalho persistente do governo brasileiro para a efetiva incorporação da região, o que demandaria ampliar os meios de comunicação, sobretudo o telégrafo – objetivo que seria alcançado três anos mais tarde, com a criação da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas, pela célebre Comissão Rondon.
Assim como escreveu sobre a guerra de Canudos antes de ser enviado ao sertão, discorreu sobre a Amazônia sem conhecê-la. Para formar seu juízo sobre a região, apoiou-se em diversas leituras, como os textos de Alexandre Rodrigues Ferreira, Alexander von Humboldt, William Chandless, Tavares Bastos, Alfred Wallace, Frederick Hartt e Walter Bates. E tal qual ocorreu com Os Sertões, os escritos elaborados após a viagem ganharam em complexidade, marcados pela ambivalência entre a defesa do progresso e a denúncia de seus problemas e contradições.
Comparada à experiência na Bahia, a viagem à Amazônia foi mais longa, mas não resultou em obra de mesmo fôlego. Em correspondência a amigos, Euclides da Cunha anunciou a intenção de escrever um segundo “livro-vingador”, expressão utilizada por José Veríssimo sobre Os Sertões. A trágica morte do escritor, em agosto de 1909, impediu a realização do projeto.
Influenciado pelo que qualificou de imaginosa literatura dos viajantes, Euclides da Cunha a princípio mostrou-se desapontado em seu primeiro contato direto com o Amazonas. Imaginara um rio grandioso e o achara pequeno, um verdadeiro diminutivo do mar, sem as ondas, a profundidade e o mistério. Tal desencanto só seria revisto após a visita ao Museu do Pará (atual Museu Emilio Goeldi) e a leitura de uma monografia do botânico Jacques Huber, que Euclides definiu como um “narrador sincero”.
As lentes e os filtros da ciência não o levaram apenas à revisão de suas impressões e conceitos – influíram também nos sentimentos do viajante. Ao contemplar a Amazônia de perto, Euclides se declarou comovido e comparou a paisagem desconhecida à da criação do mundo. Oscilando entre o cientificismo e o romantismo, entre a pretensa descrição objetiva e a comoção despertada pela natureza, Euclides descreve a floresta como “um vasto e luxuoso salão” onde o homem seria um “intruso impertinente”.
O tema da transformação da natureza, tão presente em Os Sertões, torna-se ainda mais acentuado na descrição dos cenários amazônicos. Aparentemente monótonos, eles se mostravam aos poucos instáveis e surpreendentes. A história daquele “paraíso perdido” – título que Euclides imaginou para o livro que não chegaria a escrever – era revolta como a do rio, e a natureza, uma opulenta desordem, desafiadora tanto para poetas como para cientistas.
As descrições dos viajantes não poderiam mesmo coincidir com as impressões dos que se fixaram por mais tempo em algum ponto do território amazônico. Um olhar mais atento não seria capaz de representar a selva como um lugar vazio, tampouco poderia ignorar o genocídio dos povos indígenas praticado na região desde o período colonial. A ideia do deserto verde, presente em seus primeiros textos sobre a Amazônia, deu lugar a uma análise sobre a forma de ocupação do território e o sistema de exploração econômica adotado.
Se o tema do isolamento do sertanejo é o que mais sobressai em Os Sertões, no cenário amazônico destacam-se o nomadismo, a mobilidade e o desenraizamento da população. Não é possível encontrar nos escritos amazônicos de Euclides da Cunha a mesma tentativa de tipificar o sertanejo de Canudos, ainda que se encontrem menções a indígenas e caboclos como “fazedores de desertos”, uma referência à recorrente prática das queimadas. O autor também reforça estereótipos sobre a preguiça dos caboclos, que, segundo ele, passavam a vida bebendo, dançando e zombando.
Grande parte dos textos aborda as atividades extrativas e o sistema de barracão responsável pelo endividamento e pela ruína dos migrantes. Obrigados a comprar seus alimentos, roupas e ferramentas no armazém (barracão) do seringalista, que debitava os custos nos salários já miseráveis, os trabalhadores contraíam dívidas das quais dificilmente conseguiam se livrar. Em mais uma de suas fortes imagens, Euclides observou que o seringueiro realizava uma anomalia, pois trabalhava para escravizar-se.
Uma das descrições mais expressivas é a do ritual de malhação do Judas, única atividade que quebrava a rotina solitária dos seringais. Em uma das cenas, um sertanejo horroriza seus filhos ao ceder o próprio chapéu para o espantalho a ser destruído no ritual. Ele estaria se vingando de si mesmo e da ambição que o fizera migrar para a Amazônia.
Embora se dedique a paisagens muito diferentes, tanto em Os Sertões como nos escritos amazônicos Euclides denuncia o drama da civilização brasileira. Em ambos, ressalta o contraste – às vezes a oposição – entre a população do litoral e aquelas dos sertões (o que poderia incluir a Amazônia, uma vez que era considerada um espaço incivilizado). O sertanejo permanece como personagem central. Ao escritor, cabia denunciar a guerra cotidiana e silenciosa travada nos seringais.
Desde sua publicação, em 1902, Os Sertões é visto como um grito de alerta para a elite política e a intelectualidade do Brasil, insensíveis à realidade do país. Contrastes e Confrontos, lançado em 1907, e À Margem da História, publicação póstuma, reúnem os artigos de Euclides sobre a Amazônia antes e após sua viagem à região. Embora menos conhecidos, os ensaios amazônicos reforçam a tese de uma formação histórica marcada por contrastes e antagonismos. O dever da ciência e dos intelectuais era, para Euclides da Cunha, promover o encontro entre Estado e nação.
Nísia Trindade Lima é pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e autora de Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representações geográficas da identidade nacional (Rio de Janeiro: Revan/Iuperj, 1999).
Bibliografia:
GALVÃO, Walnice e GALOTTI, Oswaldo (orgs.). Correspondência de Euclides da Cunha. São Paulo: Edusp, 1997.
HARDMAN, Francisco Foot. “A vingança da Hiléa: os sertões amazônicos de Euclides”. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, número 144, pp. 29-64, janeiro-março de 2001.
SANTANA, José Carlos Barreto de. “Euclides da Cunha e a Amazônia; visão mediada pela ciência”. História Ciências Saúde Manguinhos, volume VI, suplemento “Visões da Amazônia”. Rio de Janeiro, setembro de 2000, pp. 901-917.
VENTURA, Roberto. “Visões do deserto: selva e sertão em Euclides da Cunha”. História Ciências Saúde Manguinhos, volume V, suplemento “Brasil ser tão Canudos”. Rio de Janeiro: setembro de 2000, pp. 133-147.
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