14 de dez. de 2009

Naufrágio na Zona Proibida


Há 500 anos, uma nau cheia de ouro afundou diante de uma praia coalhada de diamantes

Por Roff Smith
Foto de Amy Toensing

Perdido em 1533, um "excelente" espanhol vem à luz em uma mina da Namíbia.
A história raramente se desenrola como fábula. Mas considere o seguinte: uma nau mercante portuguesa do século 16 transportando uma fortuna em ouro e marfim rumo a um famoso porto de especiarias na costa da Índia desvia-se de sua rota por causa de uma forte tempestade ao tentar dobrar o extremo sul da África. Dias depois, avariada, a embarcação se espatifa em um misterioso e nevoento litoral juncado de diamantes - mais de 1 milhão de quilates deles -, escárnio cruel do sonho de riquezas dos marujos. Nenhum dos náufragos jamais voltou para casa.

Tão improvável peripécia teria se perdido para sempre não fosse pela espantosa descoberta, em abril de 2008, de um barco afundado nas areias da praia no Sperrgebiet - o rico e famoso território privado da mineradora de diamantes De Beers, na boca do rio Orange, ao sul da costa da Namíbia. Um geólogo da companhia que trabalhava na área de mineração U-60 topou com uma aparente meia esfera de pedra perfeitamente arredondada. Curioso, apanhou o objeto e se deu conta de que se tratava de um lingote de cobre. Uma estranha marca de tridente na superfície gasta revelou-se o emblema de Anton Fugger, um dos mais ricos financistas do Renascimento europeu. O lingote era do tipo que, na primeira metade do século 16, se trocava por especiarias nas chamadas "Índias", designação genérica de uma região que compreendia mais de uma dezena de países atuais, desde a Índia e o Paquistão até a Malásia e a Indonésia.

Os arqueólogos descobririam mais tarde uma impressionante partida de 22 toneladas desses lingotes debaixo da areia, além de canhão, espadas, presas de elefante (marfim), astrolábios, mosquetões e cotas de aço - ao todo, milhares de artefatos. E ouro, lógico, ouro a mancheias: mais de 2 mil lindas e pesadas moedas, a maioria excelentes, a moeda espanhola do século 16 com as efígies dos reis da Espanha Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Havia também uma miscelânea de moedas venezianas, mouras, francesas e portuguesas, estas últimas ostentando o brasão de armas do rei D. João III.

É de longe o mais velho naufrágio já localizado na costa da África subsaariana, e o mais rico. Seu valor em dólares ainda é incerto, mas nenhum de seus tesouros teve o condão de atiçar a imaginação dos arqueólogos de todas as partes do mundo com a mesma intensidade quanto o navio sinistrado em si mesmo: um East Indiaman português, como chamavam as embarcações que faziam a rota das Índias Orientais, datado dos anos 1530, em pleno apogeu da era dos descobrimentos, com seu carregamento de valores e produtos comerciais intacto, depois de repousar intocado e insuspeito por quase 500 anos.

"É uma oportunidade inestimável", diz Francisco Alvez, decano dos arqueólogos marítimos portugueses e chefe da arqueologia náutica do Ministério da Cultura. "Sabemos pouco sobre esses grandes navios. Esse é só o segundo que já foi desenterrado por arqueólogos. Todos os demais foram saqueados por caçadores de tesouros."

Caçadores de tesouros nunca serão problema aqui, no meio de uma das minas de diamante mais resguardadas do mundo, em um litoral cujo próprio nome - Sperrgebiet - significa "zona proibida" em alemão. Longe de saqueadores, as autoridades da De Beers e do governo da Namíbia, que nessa área arrendada formam uma joint venture denominada Namdeb, suspenderam as operações no local do naufrágio, convocaram uma equipe de arqueólogos e passaram semanas a minerar história em vez de diamante.

Pesquisadores vão levar anos estudando a riqueza do material coligido no "Naufrágio dos Diamantes", como foi chamado. "Há muita coisa desconhecida", afirma o português Filipe Vieira de Castro, coordenador do programa de arqueologia náutica da Texas A&M University. Castro passou mais de dez anos estudando as naus mercantes portuguesas, desenvolvendo modelos computadorizados com base em escassos achados arqueológicos. "Esse naufrágio vai nos proporcionar novos dados sobre tudo, desde formato do casco, cordame e evolução desses barcos até detalhes como o jeito como se cozinhava a bordo e os pertences levados em grandes jornadas."

Um trabalho detetivesco em meio a raros manuscritos e arquivos reais em Lisboa amealhou quantidade suficiente de peças e fragmentos históricos para reconstituir o caso, rico em ironia e alegoria tanto quanto em ouro, de uma viagem há muito esquecida e de um navio desaparecido.

A história tem início na sexta-feira 7 de março de 1533, primavera em Lisboa, quando as grandes naus da frota que seguiria para as Índias naquele ano zarparam em grande estilo da foz do rio Tejo para o imenso Atlântico, com bandeiras e flâmulas a tremular, sedas coloridas e veludos a decorar os castelos de proa e de popa. Esses barcos eram o orgulho de Portugal, os ônibus espaciais da época, a caminho de uma odisseia de 15 meses para trazer fortuna em especiarias de longínquos continentes. Goa e Cochin (Índia), Sofala (Moçambique), Mombasa (Quênia), Zanzibar (Tanzânia) e Ternate (ilhas Molucas, Indonésia): lugares lendários e tão remotos quanto as estrelas na época, hoje, são portos rotineiros, incorporados à língua portuguesa graças ao engenho e à tecnologia da brava gente lusitana.

Fonte: Viaje aqui

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