Por Michel Janssem - Quando tinha dezoito anos pensava que o mundo inteiro cabia na minha mão. Desde cedo tinha descoberto minha vocação de andarilho, herança de meu pai, capitão de alto mar.
Naqueles tempos existiam passes ferroviários para jovens viajarem pela Europa, por um preço modesto, com toda liberdade. Já tinha percorrido Itália e Grécia, dormindo em albergues da juventude ou na praia. Curioso por conhecer o Meio Oriente, viajei num barco de pescadores, desde a ilha grega de Rhodes até Marmaris, ainda uma cidade dorminhoca naquela época distante. Os tubarões que surgiram no meio do trajeto nos acompanharam até o litoral turco, mostrando seus dentes pontiagudos. Após percorrer grandes partes da Turquia em ônibus e à carona, cheguei finalmente a Istambul, ponto final de minha viajem, de onde voltaria para meu país.
Nas proximidades da ponte Bósforo, entre bandeiras vermelhas com a meia lua em branco e gigantescas imagens de Atatürk, o “pai” de todos os turcos, fundador da Turquia moderna, vi um cachorro. Era um animal grande e magro com a coluna vertebral quebrada em três lugares, o qual lhe dava um aspecto macabro. Não achei esquisito isso, pois, já sabia que na terra dos muçulmanos um cachorro não vale grande coisa. O animal me olhou intensamente e dei-lhe a metade da pizza que estava comendo. Logo me meti de novo entre o trânsito caótico, seguindo meu percurso turístico.
No dia seguinte, caminhando ao longo da agência principal dos correios, uma sombra surgiu entre uns arbustos, rápido como uma onça, pondo-se de pé contra mim. Era quase tão alto quanto eu. Quase perdi o equilíbrio. Um senhor na rua, de aspecto respeitável e grandes bigodes, se assustou ainda mais do que eu. Era o cachorro do dia anterior que me cumprimentou a seu jeito. Após observá-lo, vi que era um animal forte, apesar de sua coluna torta, com olhos inteligentes e nobres. Queria expressar sua gratidão, sem dúvida. O resto do dia o cachorro não se afastou de mim. Me seguia como um guarda-costas, portando-se como se eu fosse seu dono. Senti que tinha se estabelecido um vínculo entre nós, e que o cachorro teria me defendido até mesmo de um leão, se assim fosse preciso.
Mais tarde, cansado de vagar pelo labirinto de ruas, me sentei no portal do albergue da juventude, o cachorro enrolado entre mim e a parede. Talvez fosse esse o único instante em que o animal se sentia sossegado e protegido em toda sua vida. De repente lembrei-me que tinha que viajar de ônibus e que era hora de partir. Me levantei bruscamente, de modo que o cachorro se sobressaltou. Agarrei minha mochila e olhei uma última vez para meu novo amigo. Nunca mais em minha existência veria uns olhos expressar uma tristeza tão profunda.
Continuei minha carreira de andarilho. Descobri que não só em países muçulmanos os animais são desprezados. Muitas vezes também em terras cristãs são considerados um estorvo para o homem. Bichos sem valor nenhum, que podem ser maltratados ou atropelados por qualquer motivo, em qualquer momento. Tem países onde nenhum motorista diminuirá a velocidade por um animal, a não ser que se trate de um boi, que representa um valor econômico. Até vi motoristas atropelando cachorros de propósito. Não posso entender tanta crueldade, precisamente em terras cristãs. Acho difícil imaginar Jesus Cristo espancando com um pau o burro em que percorria as ruas de Jerusalém ou os apóstolos jogando água fervente para os gatos do bairro que pedem um pouco de comida. Verdade é que ao homem lhe foi dado o domínio sobre os animais. Embora, isso não significa que pode judia-los a vontade. Cada animal, por insignificante que pareça nos olhos do homem, também representa o santo nome do Criador. Cada qual desses animais maltratados me traz à memória aquele último olhar do cachorro do Bósforo.
Michel Janssem é holandês, casado com a Tarauacaense Lândia Janssem.
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