3 de set. de 2010

PASSEIO SOCRÁTICO - FREI BETTO

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos, e em paz nos seus mantos cor de açafrão...

Em outro dia, eu observava o movimento do Aeroporto de São Paulo:
a sala de espera estava cheia de Executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado o seu café da manhã em casa; mas, como a companhia aérea oferecia outro café, todos comiam vorazmente.

Aquilo me fez refletir: "Qual dos dois modelos vistos por mim, até aqui,
realmente produz felicidade?".

Passados alguns dias, encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: "Não foi à aula?". E ela me respondeu: "Não. Eu só tenho aula à tarde". Comemorei: "Que bom! Isto significa, então, que, de manhã, você pode brincar, ou dormir até mais tarde!...". "Não;", retrucou-me ela, "tenho tanta coisa a fazer, de manhã...". "Que tanta coisa?", perguntei.

"Aulas de inglês; de balé; de pintura; piscina", e começou a elencar seu
programa de garota robotizada...

Fiquei pensando: "Que pena! A Daniela não me disse: "Tenho aula de
meditação".

Vê-se que estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas, emocionalmente infantilizados.

Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis
livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de
ginástica e três livrarias!

Não tenho nada contra malhar o corpo... Mas, preocupo-me com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos. Alguns perguntaram "Como estava o defunto?". E outros responderão: "Olha..., uma maravilha, não tinha uma celulite!"...

Mas, como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação, porém, de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual. Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. E somos também eticamente virtuais...

A palavra hoje é "entretenimento". Domingo, então, é o dia nacional da
imbecilização coletiva. Imbecil, o apresentador; imbecil, quem vai lá e se
apresenta no palco; imbecil, quem perde a tarde diante da telinha...

E como a publicidade não consegue vender felicidade, ela nos passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: "Se tomar este refrigerante, calçar este tênis, usar esta camisa, comprar este carro..., você chega lá!".

O problema é que, em geral, "não se chega"! Pois, quem cede a tantas propagandas desenvolve, de tal maneira, o seu desejo, que acaba precisando de um analista, ou de remédios. E quem, ao contrário, resiste, aumenta a sua neurose.

O grande desafio é começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse
condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: a amizade, a auto-estima, e a ausência de estresse.

Mas, há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um Shopping Center. É curioso: a maioria dos Shoppings Centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles, não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de "missa de domingo". E ali dentro se sente uma sensação paradisíaca: não há mendigos, não há crianças de rua, não se vê sujeira pelas calçadas...

Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno: aquela
musiquinha de esperar dentista. Observam-se vários nichos: capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Mas, aquele que só pode comprar passando cheque pré-datado, ou a crédito, ou, ainda, entrando no "cheque especial", se sente no purgatório.

E pior: aquele que não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno...

Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald...

Por tudo isto, costumo dizer aos balconistas que me cercam à porta das
lojas, que estou, apenas, fazendo um "passeio socrático". E, diante de seus olhares espantados, explico: "Sócrates, filósofo grego, também gostava de escansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia:
"Estou, apenas, observando quantas coisas existem e das quais não preciso para ser feliz!"

FREI BETTO, eleito Intelectual do Ano (1986) pela União Brasileira de Escritores, publicou obras que abrangem diferentes gêneros: na ficção, Hotel Brasil e Entre todos os homens; na literatura infanto-juvenil, Uala, o amor; na ficção juvenil, Alucinado som de tuba e O vencedor; no ensaio, A obra do artista: uma visão holística do universo e Sinfonia universal: a cosmovisão de Teilhard de Chardin; em memórias, Batismo de sangue, obra que mereceu o prêmio Jabuti (1985), e Alfabetto: autobiografia escolar. Muitas de seus livros mereceram tradução no exterior. “Treze Contos Diabólicos e um Angélico” saiu na editora Planeta em março de 2005.
Militante de movimentos pastorais e sociais, Frei Betto ocupa hoje a função de assessor especial do Presidente da República e é coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero. Colabora com vários jornais e revistas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Atenção:
Comentários ofensivos a mim ou qualquer outra pessoa não serão aceitos.