24 de jun. de 2011

STF CONDENA PRIMEIRO PARLAMENTAR COM FORO PRIVILEGIADO

Autor(es): Douglas Fischer
Correio Braziliense - 23/06/2011

Procurador regional da República na 4ª Região, mestre em instituições do direito e do Estado pela PUCRS.

Há tempos o foro privilegiado é alvo de críticas no Brasil. Aliás, o nosso país é pródigo na ampliação desse benefício, situação nem de longe comparável com a de qualquer outro país democrático no mundo. Mas precisamos dizer que, em todo processo, há marcos históricos. Porém, infelizmente há possibilidade de esse importante feito não ser cumprido na prática.

Em 27 de setembro de 2010, pela primeira vez em toda a sua história de mais de 100 anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) condenou alguém com foro privilegiado (Ação Penal nº 516). O réu, um deputado federal, descontou a contribuição previdenciária do salário de seus empregados, mas não a repassou ao INSS. Além disso, praticou outras fraudes contra a já combalida Previdência Social. A pena: sete anos de reclusão em regime semiaberto.

Porém ninguém contava com a "astúcia" do réu-parlamentar. Quatro dias depois da condenação (contra a qual não cabe recurso), ele devolveu os valores aos cofres públicos. Muitos anos depois do crime, é verdade, mas "devolveu". Pode o leitor perguntar: o que tem o fato de ele ter devolvido o que sonegou aos cofres do INSS depois de condenado?

É que o legislador brasileiro (alguém se surpreende?) criou uma lei (mais uma entre tantas similares) que permite ao criminoso (apenas ao de colarinho branco, claro!) flagrado e condenado definitivamente pelo crime que cometeu devolver os valores aos cofres públicos e se livrar do crime. Diz-se que há extinção da punibilidade.

A ideia de que os devedores (não os criminosos) tributários tenham chances de parcelar seus débitos é elogiável. Imprescindível em um país de carga tributária altíssima. Mas nas entrelinhas da lei (na verdade, já se perdeu a vergonha e, hoje, se coloca tudo explicitamente), constam regras que permitem esses disparates em prol de criminosos. Coisas que só existem no Brasil! Mas frise-se: só em benefício do criminoso de colarinho branco!

Claro, alguns defendem que a finalidade da regra é estimular a arrecadação. Mas isso é apenas falácia argumentativa que não ilude nem criança do primeiro ano letivo. Já está provado que essas regras não estimulam nenhuma arrecadação. Pelo contrário: estimulam a prática de crimes cujo "único risco" é devolver (sabe-se lá quando) o que foi sonegado.

Veja bem: caso ocorra a condenação (como no caso citado acima), o criminoso corre um só risco, que é devolver o que sonegou. Chega a ser surreal! A finalidade é a impunidade, nada mais. A pergunta é: o STF vai referendar tamanha impunidade e transformar esse evento em marco de impunidade histórico?

É importante dizer que há uma ação direta de inconstitucionalidade no STF (ADI 4.273, relator ministro Celso de Mello) em que o Ministério Público Federal defende que as regras que permitem a extinção da punibilidade pela devolução do que foi sonegado são manifestamente inconstitucionais. Não só por fomentar a impunidade, mas também por violar inúmeros dispositivos constitucionais, gerando notadamente a desproteção da coletividade, que é imposição constitucional.

Para quem conhece os verdadeiros e integrais postulados do garantismo penal, não podemos esquecer que o autor italiano Ferrajoli é muito claro: as baterias do direito penal devem voltar-se especialmente para os crimes graves e dessa natureza, ao contrário do que difundido aqui em terras brasileiras, onde se procura, sob o apanágio do garantismo, a busca da impunidade.

É preciso reconhecer a invalidade de regras dessa natureza, que geram desestruturação sistêmica e abandono total dos mais caros direitos coletivos resguardados constitucionalmente. Os ministros que compõem a Corte Suprema sabem disso, não temos dúvidas. E, por isso, cremos que vão atentar para a solução desse caso, que poderá ser paradigma histórico: a confirmação da primeira condenação por alguém que possui foro privilegiado, ou novo acontecido em que, diante de uma lei inconstitucional, foi permitida a impunidade de (mais) um grande criminoso. Cremos (ainda) que a Corte Suprema protegerá os interesses coletivos, também amparados constitucionalmente porque, adaptada a frase de François Andriex, pensamos que não existem juízes "apenas" em Berlim.
CLIPPING PLANEJAMENTO

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Atenção:
Comentários ofensivos a mim ou qualquer outra pessoa não serão aceitos.