Amigos,
Imaginem a cena: milhares de adultos fazendo filas para comer papinhas de bebê requentadas em réchauds de aço inox. Médicos se acotovelando para devorar leitinhos infantis açucarados e biscoitos de aveia e mel. Centenas de respeitáveis profissionais ansiosos para responder um joguinho de perguntas e ganhar bichinhos de pelúcia; jogando dadinhos gigantes para ganhar picolés de graça.
Estas cenas não pertencem a alguma comédia dos Trapalhões ou a um pesadelo de pais esgotados. São reais e colocam, de forma muito eloqüente – e caricatural, neste caso – uma faceta pouco conhecida da medicina.
A relação entre indústria farmacêutica e médicos é sempre problemática. A necessidade de colocar o lucro antes da saúde, do beneficio social ou ambiental está ainda no DNA da empresa privada. Existem mudanças no horizonte, mas são lentas e ainda restritas a poucas corporações. Se o lucro vem antes de tudo e o poder é quase ilimitado, como no caso da indústria farmacêutica, a ética- inclusive a dos médicos – e o bem estar do público são vitimas fáceis.
Existem muitas restrições que limitam a propaganda de remédios diretamente para o consumidor. Portanto, o médico, que prescreve a droga, acaba sendo o alvo preferencial da indústria. Há várias formas de cooptar a “opinião cientifica” de médicos. E os alvos mais valiosos são aqueles que se encontram em posição de influenciar decisões que gerem mais vendas – seja por influência no público diretamente, no governo, na mídia ou – muito importante – em outros médicos.
A indústria pode, por exemplo, financiar estudos “científicos” sobre seus produtos, mascarando ou alterando resultados; manipulando estatísticas e mesmo, estratégia mais comum, trazendo a público apenas os que deram resultados favoráveis (os que mostram que o remédio não funcionou vão para a gaveta). Médicos recebem dinheiro (de forma direta, mas velada) da indústrias para promover direta ou indiretamente uma droga; médicos são seduzidos por favores como passagens para congresso, viagens e estadias pagas em hotéis caros, aparelhos de todo tipo, comissões, pagamentos para publicar artigos, dar palestras que mostram como é bom tal ou tal remédio… enfim, são muitas as estratégias.
Uma das mais criativas é a da Nestlé Brasil. A maior indústria de alimentos infantis do planeta que escolheu como estratégia – extremamente inteligente – influenciar nossos pediatras. Ora, pediatras influenciam mães e pais, com autoridade de quem cuida da saúde de nossos filhos! Quer melhor que isso para vender? Acontece que a Nestlé está constantemente na lista das piores empresas do mundo para o planeta (veja mais em http://www.stopcorporateabuse.org/search/node/nestle) com varias práticas questionáveis para a saúde e o meio ambiente. Por exemplo, descarrega quantidades brutais de açúcar (pra quem não conhece, substância extremamente nociva, comprovadamente geradora de adição física, usada e abusada por toda a indústria de alimentos) em seus produtos infantis (inclusive o Ninho “fases”, mamães…), viciando o organismo infantil e prejudicando sua saúde. Me lembro até hoje da propaganda chocante dos flocos de milho da Nestlé, que pra ganhar da Kellogg colocou um urso branco (!!) de símbolo, que enviava um raio que fazia os floquinhos ficarem mais brancos, nevados, de…. adivinha? Uma empresa que carrega na sua história o apelido de “Baby-Killer” (usado por diversos movimentos sociais), por ter, durante muitos anos, criado a cultura do leite materno ruim ou fraco para vender seus leites infantis, e distribuído propaganda e latas de leite em maternidades – inclusive de países pobres – induzindo o desmame (e portanto a desnutrição e muitas vezes adoecimento e morte) de milhões de bebês. Essas práticas foram combatidas ferozmente pela sociedade civil (especialmente o movimento feminista) até serem regulamentadas (e proibidas) na maioria do planeta.
Mas infelizmente, em nosso pais e em muitos outros, o desmame precoce ainda é uma triste realidade. E muitas vezes ocorre devido ao conselho de profissionais de saúde, entre eles, pediatras e obstetras. Maternidades são conhecidas pela prática de oferecer complementos para recém nascidos, muitas vezes desnecessariamente, à revelia das famílias. A Sociedade Brasileira de Pediatria faz um belo trabalho de defesa e promoção do Aleitamento Materno – recentemente, por exemplo, pressionando pela aprovação da licença de 6 meses. Mas por outro lado, tudo, literalmente tudo que a SBP faz é patrocinado pela Nestlé. A indústria colou de tal forma a sua marca à SBP que chega a ser bizarro. Todas as publicações da Sociedade de Pediatria vem com o logo “Nestlé Nutrition”. Cursos, atualizações, manuais, correspondência… tudo. É muita simpatia. A Nestlé está de tal maneira identificada com a pediatria brasileira, que causa fascínio em todos os que vem a conhecer este “case” de marketing. E é muita ambigüidade: por um lado lutar pela amamentação e por outro lado, se apoiar inteiramente na indústria que historicamente foi a pior inimiga do leite materno, e cujos produtos, que deveriam ser uma espécie de reserva técnica para casos excepcionais, são propagandeados diariamente para médicos (aliás, os de outras indústrias também).
E aí… semana passada passei um dia no Curso Nestlé de Atualização em Pediatria, oferecido (sem custos) anualmente pela empresa e freqüentado por milhares de pediatras de todo o pais. A edição 2012 foi no Rio, e fui lá para assistir uma aula específica.
O que vi era difícil de acreditar. Um pátio gigantesco, no Riocentro. Milhares de médicos, a maior parte acima de seus 40 anos, se acotovelavam para participar das promoções da Nestlé. Eram “quizes” de perguntas (quase todas relacionadas direta ou indiretamente a produtos da empresa) para ganhar… bichinhos de pelúcia; joguinhos da memória infantis sobre as papinhas Nestlé, para ganhar pingentinhos; joguinhos de dados gigantes para ganhar picolés; fotos com logo de iogurte para colocar no Facebook; videogames com símbolos de produtos para ganhar mais brindes infantis. Nos stands servia-se chocolatinhos, leitinhos, Ninho Soleil, Chambinhos, biscoitos, sorvetinhos e pasmem: papinhas Nestlé. Em réchauds de aço inox, servidos por mocinhas em traje de chef. Em todas as estações, centenas de pediatras se acotovelavam para participar, provar papinhas e ganhar brindes infantis. Isso em meio a propagandas gigantescas de todos os produtos da empresa, em especial os leites para bebês.
Ora, uma coisa é propaganda lúdica, bem humorada. Mas o que vi ali foi um show de infantilização simplesmente inacreditável. Uma empresa se propondo a tratar pediatras como crianças e pediatras assumindo esse papel de forma caricatural. Assim fica muito fácil imaginar como a Nestlé se inscreve no imaginário destes profissionais. Como eles de forma inconsciente transformam a empresa numa “Grande Mãe” que os ama, e portanto, merece amor filial. Uma mistura genial de marketing e psicanálise, que para alguém que conseguia ver este cenário um pouco “do lado de fora”, parecia um verdadeiro show de horror.
Algumas fotos podem ilustrar de forma muito superficial um pouco do que está aqui descrito.
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Nota do blog: Eita!
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