O “monstro de olhos verdes” faz a ansiedade aumentar, provoca sintomas físicos como aceleração dos batimentos cardíacos e uma espécie de cegueira induzida pela emoção, capaz de afetar tanto nossa percepção quanto a forma como registramos fatos na memória. E interfere não apenas no que vemos, mas no julgamento que fazemos dos fatos
GLÁUCIA LEAL - Insano, paranoico, dolorido. E às vezes perigoso, tanto para quem o sente quanto para aquele a quem se destina. Assim é o ciúme, sentimento descrito de forma magistral por William Shakespeare em uma de suas obras mais conhecidas, Otelo, o mouro de Veneza. No texto do século 17, o protagonista mata sua mulher, a fiel e apaixonada Desdêmona. Atormentado pelas intrigas de Iago – que despertam no protagonista o “monstro de olhos verdes” –, a todo momento Otelo vê algo que interpreta como indício ou prova de traição. “Uma espécie de cegueira induzida pela emoção”, define o psicólogo Steven Most, atualmente pesquisador da Universidade New South Wales, em Sydney, Austrália. Um dos autores de um estudo sobre relações entre percepção, cognição e ciúme, ele afirma que emoções não interferem apenas no que de fato vemos, mas na forma como entendemos as situações, como os fatos são registrados em nossa memória e no julgamento que fazemos deles.
Considerando que essa espécie de “loucura momentânea”, capaz de fazer a realidade se transmutar de maneira ameaçadora diante de nossos olhos, interfere na consciência, a expressão “cego de ciúme”, de fato não se restringe a uma metáfora. Em um estudo, psicólogos do Laboratório de Motivação, Atenção e Percepção da Universidade de Delaware reuniram vários casais heterossexuais e pediram que, sentados lado a lado, tentassem identificar paisagens borradas em fotografias, em grau de dificuldade crescente.
Em uma segunda etapa do experimento, as voluntárias fizeram a mesma tarefa, enquanto os companheiros, ao lado, foram solicitados a ver imagens de mulheres e classificar as que achavam mais atraentes. Resultado: as voluntárias se saíram pior. Segundo o artigo sobre o estudo publicado no periódico científico Emotion, a queda no desempenho foi maior entre as que se assumiram realmente incomodadas por saber que seu parceiro via outras mulheres. “Ao deparamos com uma pessoa, objeto ou cena que nos provoca fortes emoções, tendemos a focar, voluntária ou involuntariamente, a atenção nisso e deixamos de ver outras coisas que estão bem na nossa frente. É o que chamamos de cegueira induzida pela emoção”, comentou Most, em entrevista à Mente e Cérebro.
Do ponto de vista da psicologia evolutiva, o ciúme – manifestado até mesmo por animais –, teve por muito tempo papel importante no mecanismo de detecção de ameaças, e assim, pode ter nos protegido de situações dolorosas. Em linhas gerais, o estudo desse sentimento pode ajudar na compreensão das maneiras como percebemos o mundo. Parece pouco admissível, porém, deixar de lado a ideia de que as raízes do monstrinho de olhar cor de esmeralda estejam na infância, quando predomina a ilusão idílica de uma complementariedade absoluta, livre de frustrações.
Podemos pensar que o ciúme esteja vinculado a uma espécie de saudade de um estado ideal, pleno de satisfação, como se o outro, objeto de amor e interesse, encerrasse em si toda a possibilidade de felicidade. Quando esse outro nos trai em nosso desejo (não importa se de forma concreta ou não) e a ilusão infantil de perfeição é perturbada, instala-se o ódio justificado, que parece conferir o direito “legítimo” à vingança. No processo de amadurecimento psíquico, o desafio é reconhecer a demanda de amor pleno e dar sentido a ela, aproximando-se do doloroso sentimento de exclusão para que seja possível transfigurar a necessidade de posse em opções mais criativas de convívio. Claro, tudo muito bonito enquanto o monstro não insiste em nos devorar de dentro para fora. Mas quem já experimentou sabe: acima de tudo, o ciúme dói. Tanto, que às vezes é difícil se lembrar do óbvio – tudo está em transformação e viver como se predominasse registro do absoluto é limitante demais.
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