Miguel de Cervantes, combatente de Lepanto, pôs na boca de sua criatura célebre um discurso que não se afina com a auto-indulgência de tantos artistas hoje
Dom Quixote. de Gustave Doré (Imagem/Reprodução)
Jerônimo Teixeira - Mark Zuckerberg me põe comovido como o diabo. O bilionário se interessa por todos nós, que usamos sua ubíqua criação. Parece até simpatizar com a minha triste figura: pois todo dia o Facebook diz que se importa com as minhas memórias! E assim, a cada vez que entro na rede social, me vejo constrangido pelas bobagens que postei dois, três, cinco anos atrás. Vez que outra, porém, emerge da memória algorítmica um escrito do qual imodestamente me orgulho. Há pouco, o Face (como se diz informalmente) me lembrou de um post meu sobre um célebre discurso de Dom Quixote. Decidi compartilhá-lo também aqui porque tem algo a ver com o tema do texto que mais teve leitura neste blog: a indulgência de tantos artistas que exaltam seu próprio “papel social”.
O post é de março do ano passado, quando trabalhava em um especial, publicado em VEJA (edição 2475, de 27 de abril de 2016, p. 84-99), sobre os 400 anos da morte da dupla que configurou a imaginação moderna: Miguel de Cervantes e William Shakespeare. Eu escrevi sobre o bardo inglês; o ensaio sobre o espanhol ficou nas mãos sempre competentes de Sérgio Rodrigues (você pode lê-lo aqui). Recomendo muito os dois livros sobre Cervantes que li então: o ainda inédito no Brasil The Man Who Invented Fiction, interpretação global da obra de Cervantes, do acadêmico americano William Egginton, e Cervantes, cuidadosa biografia do francês Jean Carnavaggio, lançada no Brasil pela editora 34.
Como este é um fórum um tanto mais amplo do que a minha timeline, talvez deva advertir que a última frase daquele post de um ano atrás precisa ser lida com atenção para a linguagem figurada. O leitor entenderá, espero, que não estou propondo uma nova guerra contra o Império Otomano, que, de resto, já não existe.
Sem mais, o texto:
Sempre admirei o “discurso das armas e das letras” de Dom Quixote (capítulo XXXVIII do primeiro livro). Agora, lendo a biografia de Cervantes escrita por Jean Carnavaggio e a bela análise de William Egginton em The Man Who Invented Fiction, compreendi melhor o “desengaño” que o autor – um herói de guerra que não recebeu de seu rei e de sua pátria o justo reconhecimento – expressa ali. As aventuras do Cavaleiro da Triste Figura são terrestres, mas, no seu discurso – à mesa de refeições, em uma estalagem -, ele descreve as agruras de uma batalha naval. A criatura presta tributo ao criador: Dom Quixote está falando de Lepanto, batalha na qual Cervantes lutou com bravura, e da qual saiu ferido, perdendo a mão esquerda (ou, pelo menos, o movimento dessa mão).
A Batalha de Lepanto, de Paolo Veronese (Imagem/Reprodução)
Dom Quixote, embora exalte também o ofício do escritor, confere a palma ao soldado. A vida militar, conclui, é superior à prática artística. Quão distantes estamos, aqui, da indulgente sensibilidade pós-romântica que eleva o Artista acima não só do soldado, mas também do advogado, do taxista, do contador, do engenheiro – enfim, do homem comum em geral e da classe média em particular. Que contraste entre Cervantes e seus herdeiros! Todos esses que são entrevistados regularmente nos segundos cadernos (ocasião em que reclamam da falta de reconhecimento do escritor e da literatura em nossa sociedade consumista) e convidados para encontros em balneários chiques e convocados para subscrever abaixo-assinados e homenageados por associações de seus pares e chamados para ocasiões solenes nos palácios e ouvidos atentamente em ciclos de palestras e simpósios e seminários e laboratórios de criação e saraus: o que fizeram para merecer tudo isso?
Que eu saiba, nenhum deles jamais matou um só turco.
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