Nenhum direito é absoluto. Mas também nenhum direito precisa ser aniquilado, de forma absoluta, para prestigiar o outro
Filipe Sabará - Desde que o tenista Novak Djokovic ficou retido em um hotel no Aeroporto de Merlbourne, impedido de entrar na Austrália por não estar vacinado contra a covid-19, críticos e apoiadores estão se manifestando a favor ou contra a decisão australiana de impedir sua entrada no país para participar do Torneio Aberto da Austrália. Na segunda-feira 10, um juiz australiano decidiu liberar o tenista, que havia sido detido na semana passada. No entanto, ele ainda pode ter de deixar o país nos próximos dias, caso o ministro da Imigração use seus poderes para deportá-lo. Por trás de tudo isso, está o debate entre os defensores e os críticos da vacinação, que agora está sendo reacendido tanto em nível esportivo quanto político.
A resistência de esportistas de elite a receber a vacina está ligada, principalmente, às dúvidas sobre os efeitos de curto e longo prazo de uma imunização nova e aprovada sob o regime de emergência desencadeado pela pandemia. No caso de Djokovic, ele é um adepto de inúmeras terapias alternativas, acredita em telepatia e telecinese, e ficou bastante chateado quando soube que só a medicina tradicional daria um jeito na lesão em seu cotovelo direito. Ele costuma defender a prática de ioga e meditação e segue uma dieta baseada em legumes. Em uma entrevista, declarou que seu retorno à forma física, que culminou em títulos consecutivos de Grand Slam, foi resultado de uma trilha de cinco dias em uma montanha com sua esposa.
Em 2011 tive o privilégio de encontrar pela primeira vez Novak Djokovic. O atleta número 1 do mundo sempre se mostrou muito atencioso com todos. Surpreendeu-me a sua simpatia e por fazer questão de falar olhando nos olhos, diferentemente da maioria das celebridades. Não tem estrelismo e moldou sua personalidade buscando aplacar os exemplos do regime opressor e virulento no qual vivenciou tão de perto. Ele cresceu em meio aos conflitos étnicos que culminaram na Guerra Civil Iugoslava e, quando menino, precisou se abrigar durante o bombardeio da Otan em Belgrado, em 1999.
Já consagrado no esporte, criou a Fundação Novak Djokovic, que constrói pré-escolas e apoia o treinamento de professores na Sérvia para dar às crianças de áreas pobres a chance de aprender e brincar em um ambiente seguro, criativo e estimulante. Seu país está no centro de sua motivação. Ele diz que jogar pela seleção nacional da Sérvia é tão importante quanto disputar Grand Slams. Ele também adora distribuir raquetes para jovens torcedores.
Não sou contra vacinas, muito pelo contrário. Mas concordo com o pai do tenista quando ele diz que Djokovic representa um símbolo do mundo livre, pois a liberdade de escolha individual deveria ser sempre a primeira questão a ser defendida em qualquer discussão a respeito das garantias dos cidadãos.
Djokovic hoje é a cara da resistência, do exercício do contraditório, e precisa ser aclamado. Ele mostrou que quando se acredita em algo é preciso levar essa questão até o final. Não importa quão feroz seja a oposição a seus ideais. Além de seus méritos esportivos, a escolha por defender sua decisão parece estar assumindo contornos de uma guerra política contra a narrativa única que nos foi oferecida até agora.
Fazendo uma correlação com a realidade brasileira, a nossa Constituição Federal diz, em seu Artigo 196, que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Não restam dúvidas que a vacinação é direito de todos, pois visa a proteger a saúde. Mas o fato de ser um direito não significa, necessariamente, que esse direito é de exercício obrigatório ou automático.
A Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública consequentes do coronavírus, trata a vacinação como medida de enfrentamento à emergência de saúde pública, mas não aborda acerca da compulsoriedade. Mas e se alguém não quiser se vacinar? E se a pessoa quiser exercer esse direito? De fato, a liberdade individual vem ganhando cada vez mais espaço e sendo mais valorizada através do Código Civil e da própria Constituição.
Verifica-se, assim, que estão em cheque direitos fundamentais: liberdade, vida, segurança e saúde pública. Nenhum direito é absoluto. Mas também nenhum direito precisa ser aniquilado, de forma absoluta, para prestigiar o outro. Há que se harmonizar. Já se viu que a vacinação compulsória e obrigatória não é necessária, pois, além de já existirem diversos outros métodos de prevenção, os principais prejudicados seriam os que se negarem a receber a vacina, sem prejuízo para o coletivo de pessoas imunizadas por essa via, assegurando a vida e a saúde pública.
O debate no entorno de Novak Djokovic está insuflando e espero que o entendimento recaia no bom senso crítico em prol do respeito ao direito individual. Djokovic tem se mostrado uma grande pessoa, tanto pela dedicação e garra como atleta de ponta, há muitos anos, como também como um ser humano verdadeiramente defensor da liberdade.
Ele é um ótimo jovem esportista, mas tem uma visão diferente da vida, sobre comer, beber, dormir e o que usar ou não para fortalecer seu sistema imunológico. É aí que não se pode criticá-lo. Caso consiga disputar o torneio, que será realizado entre 8 e 21 de fevereiro, o sérvio buscará seu décimo título do Aberto da Austrália e o 21º título Grand Slam. Ele, provavelmente, poderá até ser vaiado por torcedores que o apelidaram de “Novax” (“Sem vacina”) — mas aplaudido por muitos que o apoiam como atleta e como símbolo da democracia e do direito às liberdades humanas.
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