21 de fev. de 2009

A morte do poeta de Vila Isabel


(Caricatura de Noel Rosa por Noel Rosa)



É quase noite. As pessoas que entram e saem o fazem na ponta dos pés, comunicam-se por sussurro. Em frente, no número 385, acertam os últimos detalhes da festa que Vicente Gagliano – o Vicente Sabonete das serenatas de antigamente – faz questão de dar pelo aniversário da mulher, Emília. Enfeita-se a mesa de doces, fura-se o bolo com as quarenta velinhas, manda-se entrar o chope. Heitor Bateria – um negro alto e magro, tocador de pandeiro, surdo e tamborim, cuja jazz band costuma alegrar as festas do bairro em troca apenas de comida e bebida – chega com seus músicos. Os convidados também. Pouco depois de oito da noite, a casa de Vicente Sabonete está cheia e animada.

O silêncio e a penumbra do chalé contrastam com a barulhenta e iluminada residência em frente. Alguns amigos vêem ver Noel, entram devagar, olham da porta do quarto para o corpo consumido, cansado, a palidez disfarçada pela pouca luz. Depois se afastam em silêncio, trocam palavras com Dona Martha e Hélio, saem como entraram, mansamente. Orestes Barbosa e o Dr. Renato Baptista, bons amigos, estão entre as visitas cautelosas. A dança na casa de Vicente Sabonete fica mais animada, a música se espalha, todos homenageando Emília. Dorica, que não perde uma festa nas vizinhanças, desta vez faz diferente: vem ver Noel. Martha pede-lhe o favor de ferver a seringa. O filho está prostrado, talvez uma injeção o reanime. A música atravessa a rua, chega até o chalé.

- Seu Vicente, ouvi dizer que o Noel está muito mal aí defronte – alguém avisa, voz baixa, ao dono da casa.

Vicente sabonete manda um de seus filhos saber se é verdade. Talvez a música esteja incomodando o doente. Dona Martha diz que não, a música nunca incomodou Noel, seu Vicente que se tranqüilize, que prossiga com a festa. Heitor Bateria comanda compenetrado a sua jazz band. É ele quem sugere, como próximo número, um samba de Noel Rosa.

De babado, sim,

Meu amor ideal,

Sem babado, não.

Noel, provavelmente, já não ouve. Tem a cabeça pousada no colo de Lindaura, os olhos semicerrados. Dorica ferveu a seringa, Hélio vai até a sala buscar a caixa de Canphydral. No portão, Martha despede-se de Orestes Barbosa e do Dr. Renato. Do outro lado, a música continua:

Passeando a meu lado,

Você sobe de valor.

Seu vestido sem babado

É você sem meu amor

(É assistência sem doutor...)

Hélio prepara a injeção. Dorica vem da cozinha com uma xícara de café bem quente. Noel, a cabeça no colo de Lindaura, parece dormir um sono calmo, profundo. Um fio de respiração é todo o vestígio de vida que há nele. Por pouco tempo, porém. A mãe já se despediu das visitas, e está agora de pé à porta do quarto. Chega a tempo de ver aquele fio de respiração se extinguir. Pouco antes das onze da noite, no mesmo quarto em que veio ao mundo há exatamente vinte e seis anos, quatro meses e vinte e três dias, morre Noel Rosa.

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