Uma estátua viva que sonha com o fracasso da seleção
Gabriel Gama – especial para O Estado de S. Paulo/BELO HORIZONTE – Em fevereiro de 1950, cinco meses antes do Maracanazo – a fatídica derrota canarinha para os uruguaios por 2 a 1 na final da Copa do Mundo –, nasceu “Eu sou o que sou”. É desta forma que um senhor de cabelos grisalhos e mechas loiras de 63 anos gosta de ser chamado. O notório cidadão faz parte de um grupo de 60 moradores de rua que se reuniram em uma sala no fundo do albergue municipal Tia Branca, no bairro Floresta, para acompanhar a partida de oitavas de final, entre Brasil e Chile, na tarde do último sábado, 28.
Entretanto, “Eu sou o que sou” era bem diferente dos demais. Não pelo fato de ter vivido apenas um ano na rua (menos tempo que os demais), ter sido despejado de casa pela mulher ou por trabalhar dez horas por dia como estátua viva no centro da cidade. Aquele senhor, que não quis revelar seu nome de batismo, era o único que não vibrava com a seleção brasileira a cada lance.
Às 12h, enquanto os alberguistas saíram correndo para a sala em busca de um lugar privilegiado para ver o jogo, “Eu sou o que sou” permanecia imune às emoções patrióticas. Ele pouco se importava com a movimentação frenética de seus colegas.
“Isso tudo é ilusão. Sabe o que eu e estes outros vamos ganhar com a vitória do Brasil? Nada. Só vai é aumentar o imposto, o preço do arroz, do feijão, da carne, da água, da luz e nossa vida ficará cada vez mais miserável”, disse.
Os primeiros moradores de rua a chegar no espaço ficavam com os melhores lugares. Os últimos, em pé. Uns deitados no chão de cimento, outros sentados em cadeiras de plástico e muitos encostados nas paredes. Mas todos com os olhos vidrados na partida e em seus pertences – há muitos casos de roubo entre os próprios alberguistas. Já “Eu sou o que sou” encontrou um canto isolado à direita do telão e ficou por lá mesmo.
Todos devidamente acomodados, a partida começa. À medida que o jogo avançava, os 59 moradores de rua se agitavam, xingavam, roíam as unhas, esbravejavam. Gritos de “Vai, Neymar” e “Bora, Brasil” eram entoados. Mas “Eu sou o que sou” seguia impassível e fazia um esforço tremendo para conter a sua torcida a favor dos chilenos. Aquela raiva aflorava por dentro a cada minuto. “Se eu comemorar contra o Brasil aqui, vou ser é linchado. Por isso, prefiro ficar quieto e só observar a inocência de meus colegas.”
Filho de judeus de Israel, “Eu sou o que sou” foi abandonado pelos pais ainda bebê em uma cidade no sudeste de Minas Gerais chamada Raul Soares, a 230 quilômetros da capital, na Zona da Mata. Criado por uma dona de casa, ele passou uma infância humilde com apenas os recursos necessários para a sua sobrevivência.
Morador de BH desde a década de 1970, “Eu sou o que sou” vive do seu trabalho artístico de estátua viva na Praça Sete, no centro da cidade, ganhando de R$ 30 a R$ 40 por dia. Ele sai às 7 horas do albergue e com o sustento do que comeu no café da manhã e um pouco do que consegue no almoço, só para de trabalhar quando o dia escurece. Às 18h, ele volta para o albergue.
A vida difícil e a realidade dura justificam a visão cética e, muitas vezes, niilista. “Eu sou o que sou” acredita que ninguém é obrigado a ajudar ninguém e que, por isso, o homem precisa correr atrás de seus objetivos e não baixar a cabeça para nada.
“O futebol é uma ilusão. Ele maquia a realidade da pessoa naquelas duas horas de jogo. Estes que estão aqui vivendo na miséria não é aquela fantasia que está na televisão. A realidade é outra e muitos moradores de rua não conseguem enfrentá-la.”
Desilusão. Vestido com um casaco de lã bege surrado em pleno sol de meio-dia, um boné cinza desbotado na cabeça e um par de tênis de corrida, Marcos Júnior Souza, 26, era um dos poucos moradores de rua que não fumava ou estava em alguma roda de conversa antes de começar o jogo.
Sozinho, encostado no muro do lado oposto à porta de entrada do albergue, o jovem tinha um semblante sério e parecia estar se concentrando para a partida, mas não era nada disso. Souza até iria torcer para a seleção brasileira, porém, o que importava para ele era o futuro de sua vida.
“O jogo realmente faz você esquecer por um tempo dos problemas, como se fosse uma fuga. Mas quando a partida acaba e a gente põe o pé aqui fora? O que será de nós? Sempre penso nisto. Eu gosto de torcer para o Brasil, mas ganhar a Copa não mudará nada”, afirma.
Souza teve uma infância conturbada com uma mãe traficante e um pai alcóolatra. Segundo ele, ambos o desmoralizavam e batiam. Com dez anos, não aguentou, fugiu de casa e, desde então, percorreu por várias metrópoles brasileiras em busca de oportunidades. “Não vejo minha mãe há 14 anos. A verdade é que nunca tive uma família, mas ao longo da vida encontrei pessoas que me acolheram por um tempo”.
Em meio às dificuldades, Souza busca algumas referências e exemplos para não desistir de continuar lutando por uma condição melhor. As trajetórias vitoriosas de jogadores da seleção brasileira, muitos oriundos de classe baixa e que viveram na periferia, são algumas destas referências. Souza não sente inveja, mas, sim, orgulho das histórias de superação.
“Fico feliz que agora eles vivem bem. Estes jogadores são grandes exemplos. Batalharam e conseguiram sucesso. Temos que nos espelhar neles e não invejá-los. Se eu tivesse 1% do dinheiro que o Neymar tem, construiria um abrigo decente para que gente como nós vivesse de maneira mais digna”, diz.
--------------------------------------------------------------------------------------------------------