O ministro Joaquim Barbosa, tendo à sua esquerda a ministra Cármen Lúcia e à sua direita, de costas para a foto, o ministro Marco Aurélio, conversando com o ministro Luiz Fux, reclinado: possíveis novas referências morais numa terra de ninguém? (Foto: José Cruz / Agência Brasil)
Ricardo Setti - Amigas e amigos do blog, talvez alguns de vocês ainda não saibam, mas ministros do Supremo Tribunal Federal — que como regra geral levam vidas discretíssimas, e dos quais a esmagadora maioria da população ignora até os nomes – vêm sendo reconhecidos e aplaudidos em restaurantes, shopping centers e parques públicos em Brasília. A começar, pelo que se poderia prever, pelo severo relator do caso, ministro Joaquim Barbosa.
O vento purificador que, até agora, vem soprando desde o Supremo Tribunal Federal no trato implacável que a maioria de seus ministros tem conferido ao processo do mensalão faz sentir seus efeitos.
Repito, para alguns leitores apressados: A MAIORIA de seus ministros. Não todos.
E ressalto que, evidentemente, os 11 ministros do Supremo NÃO SÃO 11 SANTOS.
Do que se trata, aqui, é de um período histórico e de um julgamento que podem conferir novos rumos à Justiça no país e um novo alento a quem anseia por menos impunidade, menos Lei do Gerson, menos jeitinho brasileiro, menos cara de pau e desfaçatez com a coisa pública. Mais esperança, quem sabe, e também, finalmente, bom exemplo vindo do alto da pirâmide do poder.
O país melhorou, mas ainda chafurda na miséria moral da impunidade
Não sei como terminará o julgamento. Ainda falta muita coisa — muitas acusações a serem comprovadas, muitos réus a serem escrutinados, muitas horas de trabalho dos ministros.
Não quero parecer otimista demais, amigas e amigos.
Mas ouso dizer que uma condenação rigorosa de altos figurões da República, como se esboça, possa ser um divisor de águas num país que há décadas vem melhorando em quase todos os setores, em quase todos os indicadores sociais e econômicos — mas que ainda chafurda na miséria moral da impunidade dos poderosos, no escárnio dos que roubam o dinheiro público, na empáfia de quem frauda e assalta sorrindo o que deveria ser de todos, de gente capaz de falsificar remédio para câncer a fim de ganhar dinheiro — sabendo que não vai para a cadeia– ou de matar pelas costas uma ex-namorada, ser réu confesso e ainda assim, com advogadões, conseguir permanecer dez anos em liberdade após ser condenado antes de, finalmente, ser encerrado numa cela.
Não temos mais figuras do porte de um Sobral Pinto, de um Dom Paulo Evaristo Arns -- vivo, mas doente -- ou de um Doutor Ulysses Guimarães |
O país melhorou em muita coisa, e seria um absurdo negar. Na vida pública, no terreno moral, porém, estamos num salve-se-quem-puder, num vale-tudo cínico e obsceno, numa terra de ninguém, no rés-do-chão — e sem que milhões e milhões de brasileiros de bem tenham, acima, para quem olhar como exemplo.
Onde estão os Sobral Pinto, os Doutor Ulysses, os Dom Paulo Evaristo, os Raymundo Faoro de hoje?
Foi-se o tempo em que um brado libertário do advogado Sobral Pinto, solene e grave em seus inevitáveis trajes negros, uma invectiva do católico fervoroso que defendeu sem cobrar o líder comunista Luiz Carlos Prestes, fazia tremer os canalhas, era capaz (como diria Nelson Rodrigues) de derrubar Bastilhas e decapitar Marias Antonietas e acendia esperanças no coração dos que desejavam justiça.
Não temos mais um Doutor Ulysses Guimarães — o Doutor Ulysses Guimarães “Senhor Diretas”, não o político do PMDB — para, desarmado, desafiar os cães da ditadura militar, fulminar, com um discurso, os Três Patetas da junta militar que usurpou o poder, ou comparar o general Ernesto Geisel a Idi Amin.
Nem tampouco o hoje adoecido cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, incansável defensor dos direitos humanos, para, diante da mentira escandalosa do regime de que o jornalista Vladimir Herzog se “suicidara” nos porões do DOI-Codi, começar o culto ecumênico por sua alma, na superlotada catedral da Sé paulistana naquele dia negro de 1975, com a condenação claríssima, corajosa e terrível, tirada de textos sagrados:
– Maldito seja aquele que, com suas mãos, tirar a vida de um irmão.
Não temos mais Grandes Brasileiros como antigamente, figuras humanas que, embora falíveis justamente por isso, eram referências morais, pareciam aos cidadãos estar acima do bem e do mal: um pensador católico como Alceu Amoroso Lima, um mestre desassombrado do Direito e defensor das liberdades públicas como Goffredo da Silva Telles — da “Carta aos Brasileiros” –, uma figura veneranda como o jornalista e pensador nacionalista Barbosa Lima Sobrinho, um presidente da Ordem dos Advogados com a firmeza, o equilíbrio, a coragem e o desassombro de um Raymundo Faoro.
Grandes Brasileiros e também Grandes Velhos.
O caso dos juízes italianos
Na Itália de de governos apodrecidos pela corrupção e, mais recentemente, pelo longo reinado do corrupto, autoritário e dissoluto primeiro-ministro Silvio Berlusconi, vem tomando cada vez maior vulto um partido político fundado por ex-juízes que, justamente, fizeram a grande limpeza que foi a Operação Mãos Limpas, nos anos 90, a qual resultou no esfacelamento completo de todos os partidos políticos tradicionais, metidos até o pescoço no lodaçal da roubalheira, do tráfico de influências e em outros tipos de crime.
Os partidos desmoronaram, líderes foram parar na cadeia, fortunas terminaram sendo confiscadas. Quem escapou de penas pesadas acabou banido, na prática e para sempre, da vida pública.
Esses magistrados implacáveis, a começar por um dos juízes que teve mais visibilidade nesse processo, Antonio Di Pietro, fundaram posteriormente um partido denominado, exatamente, Itália dos Valores (Italia dei Valori), um partido moderado, de centro, cujo eixo central de atuação é a absoluta intolerância com a corrupção. Entre outros feitos, o novo partido já ganhou de forma esmagadora eleições para governar duas das cidades com instituições mais infiltradas pelo crime na Itália e, provavelmente, no mundo — Palermo, na Sicília, e Nápoles.
Não se trata de ter heróis — mas referências morais
Não acho que os juízes, no Brasil, devam fundar partidos políticos.
Mas, quem sabe, terminemos o julgamento do mensalão não apenas com um resultado exemplar e saneador para a vida pública brasileira, mas também obtendo de novo NÃO HERÓIS, mas algumas REFERÊNCIAS MORAIS, algumas figuras públicas em quem os jovens possam se mirar, capazes de serem dignas de admiração e instrumentos de fé na Justiça, nas instituições, em valores como a correção, a ética, a honestidade e o cumprimento da lei – e num Brasil oficial menos safado e hipócrita do que o que temos.
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