Com financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), um órgão do Ministério da Educação e Ciência de Portugal, e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), os pesquisadores conseguiram desenvolver produtos seguros e de baixo impacto ecológico, à base de óleos naturais, extraídos de plantas nativas do Brasil e da Ásia, para controlar a proliferação das espécies de mosquito responsáveis pela transmissão de doenças como dengue, zika, chikungunya e febre amarela.
Em entrevista à Sputnik Brasil, o português Hermínio Sousa, coordenador do projeto e investigador da Universidade de Coimbra (UC), fala sobre a parceria de anos com as instituições brasileiras, da preocupação de que a dengue se torne uma doença endêmica na Europa com as alterações climáticas, e das dificuldades enfrentadas pelos pesquisadores durante a pandemia.
Pesquisador do Centro de Investigação em Engenharia dos Processos Químicos e dos Produtos da Floresta (CIEPQPF) da UC, ele também explica que os produtos desenvolvidos são biodegradáveis, sem propriedades tóxicas ou perigosas para humanos, animais e meio ambiente, além de terem a vantagem de ter uma duração prolongada, quase 30 vezes maior em relação aos produtos atuais.
"Há certos materiais que colocamos em contato com a água, e eles libertam todo o biocida em dois ou três dias. Neste dispositivo, conseguimos que ele fosse libertado lentamente, o que garante uma concentração elevada do biocida durante muito mais tempo. Conseguimos controlar a libertação dos larvicidas por períodos mais prolongados, por cerca de quase 90 dias, garantindo uma proteção elevada durante mais tempo", explica Hermínio Sousa à Sputnik Brasil.
Também participaram do projeto outros pesquisadores do CIEPQPF-UC (Mara Braga, Marisa Gaspar, Ana Dias e Carla Maleita), da UFBA (Sílvio Vieira de Melo e Elaine Magalhães Cabral) e da Fiocruz (Fábio Rocha Formiga).
Hermínio Sousa, entre as pesquisadoras Mara Braga e Marisa Gaspar, da Universidade de Coimbra
© Foto / Divulgação/UC
Confira a entrevista na íntegra a seguir:
Sputnik: Por que o interesse da Universidade de Coimbra em liderar essa pesquisa? Já houve algum surto dessas doenças em Portugal?
Hermínio Sousa: Em Portugal continental, não. Mas houve um surto de dengue na ilha da Madeira, uns anos atrás, do Aedes aegypti. E, relativamente próximo às ilhas Canárias, houve também um surto. Essa informação não é muito divulgada a nível europeu. Recentemente, na Itália, também houve surtos de chikungunya, não com o Aedes aegypt, mas com outro mosquito do mesmo gênero, o Aedes albopictus, que também existe em Portugal. Daí o nosso receio. Com as alterações climáticas e a constante circulação de pessoas e mercadorias, resultantes da globalização, é natural que os países do sul da Europa (Portugal, Espanha, Itália, Grécia, Croácia, Malta), assim como alguns do norte da África (Marrocos, Argélia, Tunísia) possam vir a ter alguns surtos dessas doenças. Para mais, esse mosquito que existe na Europa resiste melhor a temperaturas mais baixas e a maiores condições de umidade, o que é um problema. Colaboramos com esses grupos [brasileiros] há muitos anos, até em outras áreas e outros tipos de materiais e aplicações. Na altura, entendemos que seria interessante abordar essa perspectiva, que é uma realidade do Brasil, apesar de na Europa ainda não, mas que tememos que possa vir a ser uma realidade. Uma perspectiva não tanto de mitigação, mas já de prevenção.
S: O senhor falou das mudanças climáticas. O aquecimento global pode fazer com que essas doenças se manifestem de forma endêmica em Portugal?
HS: Esse é o nosso temor, de que o Aedes aegypti se estabeleça nesses países do sul da Europa, que vão ser mais afetados pelo aumento da temperatura, resultante das alterações climáticas, e que as populações dos outros mosquitos vetores da doença venham também a aumentar. Temos o Aedes albopictus, que também foi trazido para Portugal, em uma zona onde sua população tem aumentado ano após ano. Há um grande problema com a circulação de matérias-primas, nomeadamente de pneus. Há várias usinas de reciclagem e de queima de pneus. Crê-se que o mosquito foi introduzido vindo nos pneus com ovos, que eclodiram e, depois, com as larvas. Os pneus sempre acumulam água e eram armazenados no exterior dessas usinas, essencialmente na região Norte. No Algarve, já foi identificado esse mosquito, mas não com uma gravidade tão severa e em grande quantidade como no Norte. Ainda há uma terceira espécie, Aedes japonicus, que já existe no norte da Espanha e, como a Galícia faz fronteira com Portugal, é natural que se estabeleçam a curto prazo no Norte português. Recentemente, soubemos que as entidades públicas de saúde já andavam em cima desse problema, mas, com a pandemia, a prioridade inverteu-se.
S: Nos últimos dois verões do Hemisfério Sul, não houve muito destaque, sobretudo na imprensa brasileira, para a dengue. A pandemia de COVID-19 escondeu essa endemia?
HS: Devemos distinguir um pouco o que a comunicação social anuncia e as medidas que estão efetivamente no terreno. O grave são as autoridades de Saúde estarem ocupadas com a COVID-19 e, por falta de recursos, não poderem se dedicar tanta atenção a essas questões de dengue e chikungunya. É natural que isso aconteça, mas agora estão de novo a prestar mais atenção. Estou a me referir à realidade portuguesa, pois a do Brasil não conheço. Julgo que tem havido, nos últimos tempos, alguns surtos de dengue em diferentes regiões do Brasil, mas não sei como a situação foi tratada.
S: O texto de apresentação da pesquisa informa que "os produtos têm ainda a particularidade de permitirem a libertação controlada dos princípios ativos de forma eficiente". O que quer dizer isso exatamente?
HS: Aquilo que procuramos desenvolver são sistemas facilmente manuseáveis pela população. São sistemas monolíticos, como cilindros, que, devido à sua composição e ao fato de controlarmos sua porosidade com polímeros, fazem com o que a libertação do agente larvicida na água seja de forma muito lenta, durante mais tempo. Há certos materiais que colocamos em contato com a água, e eles libertam todo o biocida em dois ou três dias. Neste dispositivo, conseguimos que ele fosse libertado lentamente, o que garante uma concentração elevada do biocida durante muito mais tempo. Do ponto de vista da pessoa que vai usar no prato do vaso ou no reservatório d'água, é muito mais prático porque precisa substituir muito menos vezes esse material. Nessa perspectiva, conseguimos controlar a libertação dos larvicidas por períodos mais prolongados, por cerca de quase 90 dias, garantindo uma proteção elevada durante mais tempo.
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S: Quais as próximas etapas, após os estudos bem-sucedidos em laboratórios até o lançamento no mercado?
HS: Há uma parte do projeto que está mais atrasada, porque a pandemia atrasou muito a evolução. Estamos um pouco no limbo. Andamos à procura de financiamento para retomar a pesquisa. Outra abordagem era desenvolver sistemas que possam ser colocados em armadilhas. Usamos estratégias na Europa para apanhar vários tipos de insetos, vetores de algumas doenças. Há sistemas em que se colocam líquidos, em frascos abertos, que evaporam muito depressa. Portanto, deixa de ter o efeito atrativo para armadilha ou podemos pensar ao contrário: pode ser um repelente para o mosquito. Não queremos que ele se liberte muito rápido, porque temos que estar sempre a substituir o líquido. Mas, devido à pandemia nos últimos dois anos, atrasou [a pesquisa]. O projeto iniciou-se em 2018, funcionou muito bem em 2019. Em 2020 e 2021, a pandemia atrasou. Como é um projeto bilateral, que envolve a deslocação dos investigadores entre os dois países, isso, obviamente, condicionou bastante. Tanto em Portugal como no Brasil, as universidades estiveram fechadas durante largos períodos, não sendo possível fazer investigação nos laboratórios. Isso condicionou muito. Tanto nós, como nossos parceiros no Brasil, andamos à procura de oportunidades de financiamento para complementar essa pesquisa por mais dois ou três anos. Já temos ligação à Fiocruz e algumas ligações a entidades oficiais de saúde em Portugal para, mais tarde, tentar desenvolver produtos que possam chegar ao mercado. Teríamos que procurar parceiros industriais com disponibilidade para fazer a produção em larga escala desses materiais.
S: Esses materiais são ambientalmente mais corretos do que os utilizados atualmente?
HS: Temos compostos monolíticos, também em grânulos, maiores ou menores, com tamanho ideal para que as larvas consigam se alimentar desses sistemas, biocompatíveis e biodegradáveis. A própria larva, ao se alimentar desses sistemas, também leva para o seu interior essas partículas, o que torna muito mais eficiente. O efeito das substâncias naturais são fatais para a larva. Pretendemos matar as larvas. No controle ambiental, queremos atrair para armadilhas ou afastar. Não queremos erradicar o mosquito, porque precisaria de outras técnicas muito mais agressivas, como inseticidas, muito mais nocivos ao meio ambiente, sem garantias de sucesso. Mesmo que erradiquemos [o mosquito] em um lugar, nada garante que, daqui a um ano, não haja de novo material importado que traga larvas e estabeleça uma outra população [de mosquitos] naquela região
S: Os óleos foram extraídos de quais plantas e regiões do Brasil?
HS: Óleo de copaíba, da Floresta Amazônica, e o óleo de melaleuca, que não é propriamente uma planta nativa do Brasil, mas também tem. Ainda usamos outro composto natural que não podemos divulgar, porque não publicamos o artigo científico.
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S: Como foi a participação dos pesquisadores da UFBA e da Fiocruz? O senhor esteve no Brasil? E eles estiveram em Coimbra?
HS: Recebemos pesquisadores da UFBA e da Fundação Oswaldo Cruz, e alguns pesquisadores da nossa equipe também se deslocaram a Salvador. Quando veio a pandemia, não tivemos hipótese. O governo português ainda estendeu o prazo do projeto por mais um ano. Entretanto, veio o segundo ano da pandemia. Neste momento, temos um pedido efetuado, mas cremos que já não vão conceder mais o prolongamento. Julgo que a situação no Brasil se mantém igual.
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