O designer Cícero Moraes conta sua experiência de trazer à vida personagens históricos por meio da computação gráfica
Letícia Iervolino - Trazer à vida grandes personagens históricos, como o imperador brasileiro D. Pedro I ou até mesmo Antônio de Pádua, conhecido como o santo “casamenteiro”, é o trabalho de Cícero Moraes, designer brasileiro de 38 anos, que utiliza computação gráfica 3-D para reconstruir a face de importantes figuras do passado.
O desejo de aprofundar o conhecimento sobre reconstituição facial surgiu depois de um assalto que quase o colocou de frente com a morte. Em 2011, Moraes, na época com 28 anos, foi rendido por uma dupla armada. Ao tentar reagir, acabou tendo a costela quebrada e recebeu um tiro de raspão na cabeça. Traumatizado, ele decidiu mergulhar sozinho nos estudos para superar a dor.
Passados 11 anos da agressão, o brasileiro, que nasceu em Chapecó (SC) mas que vive hoje em Sinop (MG), tornou-se uma referência mundial em computação gráfica 3-D.
Seus trabalhos foram traduzidos para centenas de idiomas e acumularam mais de 20 prêmios e títulos honoríficos nacionais e internacionais por sua contribuição à ciência. Dentre as conquistas, Moraes recebeu da Faculdade Tecnológica de Limoeiro do Norte e da Fundação Cariri o título honorífico de doutor honoris causa, o mais importante concedido por uma universidade.
Além disso, Cícero Moraes obteve o reconhecimento do Guinness World Records 2022 por ter sido o primeiro a projetar em 3-D um casco de uma fêmea de jabuti que sofreu queimadura e ficou sem a proteção após um incêndio, em 2015. A invenção de Cícero foi a primeira prótese no mundo desenvolvida com impressora 3-D exclusivamente para esse animal.
Prótese da fêmea de jabuti | Foto: Reprodução Cícero Moraes
Entre uma polêmica e outra sobre o resultado da face de algumas personalidades, como a de Jesus de Nazaré, retratado pelo designer como um homem negro, de cabelos curtos e pretos, Cícero Moraes conversou com Oeste para explicar os detalhes e os desafios da profissão, além de comentar sobre a situação do Brasil no mercado de reconstrução facial forense.
1 — Qual a importância da reconstrução facial para os estudos de História?
A reconstrução facial forense é uma técnica de reconhecimento a partir de um rosto aproximado, tendo como base um crânio. Esse não é um trabalho de hoje. Na realidade, o ofício teve sua origem no fim do século 19, com o trabalho do anatomista suíço Wilhelm His, e teve grande desenvolvimento entre as décadas de 1940 e 1970, com as técnicas russa, norte-americana e inglesa. A abordagem foi significativamente utilizada pela polícia para a reconstrução da face de vítimas de crime, mas a popularidade da prática se deve, principalmente, por trazer à vida grandes personagens históricos. Sempre gostei de desenhar, de modelar em 3-D, de história e de pesquisa. A reconstrução forense também é importantíssima, porque ela me permitiu trabalhar na área da saúde e conhecer um novo mundo, o do planejamento cirúrgico facial, área especializada em confeccionar e projetar próteses humanas para cirurgia maxilar, rinoplastia e ortodontia. Essa é a área à qual me dedico atualmente e que me ajuda na conquista do pão de cada dia.
2 — Quais são as maiores dificuldades e o que mais o agrada no trabalho?
As maiores dificuldades estão atreladas à aquisição dos crânios e à aprovação das faces, posto que reconstruo majoritariamente crânios históricos. Quando trabalhamos em equipe, a última palavra é do grupo, e sempre há algo para alterar, até que se chegue à versão final. As maiores alegrias estão relacionadas ao conhecimento adquirido em cada projeto e à oportunidade de conhecer pessoas de todo o mundo, já que o intercâmbio técnico e cultural é grande. Além disso, cada trabalho meu foi importante em um determinado período da minha vida. Aquele que mais me marcou foi a reconstrução de Santo Antônio. Outra coisa que me marcou foi ver as pessoas utilizando o meu programa de reconstrução, que é gratuito e de código aberto [qualquer pessoa pode baixar e utilizar o código] para Windows, Mac e Linux, utilizado principalmente por médicos e cirurgiões. Imagina a responsabilidade de utilizar uma tecnologia para fazer um planejamento cirúrgico? Fiquei feliz, porque foi aprendendo a utilizar essa tecnologia que superei o trauma que tive depois do assalto.
Reconstrução de Santo Antônio de Pádua Foto: Reprodução Cícero Moraes |
3 — Em 2018, o senhor modelou uma face que seria mais compatível com o “verdadeiro” Jesus de Nazaré, que teve ampla repercussão nacional. Na época, muitas pessoas criticaram o trabalho, em virtude da aparência do profeta. Como o senhor reagiu a essa polêmica?
O que aconteceu foi muito simples: aquilo não era uma reconstrução exata de Jesus Cristo. O que eu fiz foi simplesmente reunir vários registros de pessoas da região em que ele viveu, além de uma série de imagens e dados onde se passaram os episódios do Novo Testamento. Esse trabalho foi uma parceria com o repórter da rede inglesa BBC Edison Veiga, que estava escrevendo uma reportagem sobre Jesus. As pessoas têm uma ideia de Jesus europeizada, com aquele aspecto de pele clara e olhos claros. Jesus é um conceito. É difícil conseguir localizá-lo historicamente. Nesse caso, não fiquei incomodado com os ataques que recebi. Era divertido acompanhar o que as pessoas falavam, porque isso se tornou um debate. Geralmente eu sou contratado por museus, principalmente os europeus, para fazer reconstruções. Eles mandam um crânio puro, ou seja, sem informações sobre a figura histórica daquela estrutura. Basicamente, os historiadores me passam três informações: o sexo, a idade e a ancestralidade daquele crânio. Em seguida, faço a reconstrução sem nenhum viés. Somente depois que termino meu ofício é que eles me informam quem eu reconstruí. Em alguns casos, sei de quem se trata, mas quase todas as figuras históricas que eu trabalho não são fotografadas. A reconstrução do próprio Santo Antônio foi assim.
Reconstrução de Jesus Cristo Foto: Reprodução Cícero Moraes |
4 — E como o Brasil se destaca na área de modelagem 3-D?
O Brasil produz um material acadêmico muito bom sobre reconstrução facial forense, em revistas robustas, com alto fator de impacto. Essa excelência faz com que o país seja bem-visto internacionalmente, uma vez que contribuiu bastante com a área técnica. Eu mesmo tive a honra de publicar artigos científicos em parceria com o Laboratório de Antropologia e Odontologia Forense e a Seção de Perícias em Áudio e Imagens do Instituto Geral de Perícias do Rio Grande do Sul.
5 — Qual conselho o senhor daria para os brasileiros que querem seguir nessa carreira?
Diria aos interessados que estudem bastante e que busquem parcerias para exercitar o que aprenderam. Hoje, o acesso a artigos e livros está muito mais fácil do que há uma década, quando comecei. Felizmente, temos bons materiais disponíveis em muitos idiomas, inclusive em português. Escrevi um livro gratuito abordando a técnica digital, sob o título Manual de Reconstrução Facial Forense 3D Digital, bem como artigos científicos e capítulos de livro sobre o tema.
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