RIO – Há duas semanas o Senado aprovou a Convenção sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, um dos pilares jurídicos da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre direitos humanos. Tornou-se crime no Brasil um agente do Estado usar as desculpas de “seguir ordens” ou “em missão militar” como razão para não ser punido por prender uma pessoa, não comunicar essa prisão e ainda privá-la de qualquer tipo de ajuda legal. As regras valem para todos os agentes públicos, mesmo em tempo de guerra.
É fato relevante num país que há três décadas convive com a busca de desaparecidos durante a ditadura militar. Mas passaram-se 17 anos desde a assinatura desse acordo, em 1994, até a sua aprovação no Congresso. Foram mais de 6.000 dias “em tramitação” legislativa.
Estreante no Senado, Pedro Taques (PDT-MT) participou da votação, perplexo:
- O nosso processo legislativo é do século XIX.
Mais tarde, fez as contas e levou um susto: se os 81 senadores e 513 deputados federais decidissem votar todos os projetos que estão pendentes no Congresso – sem apresentar nenhum novo e mantendo o atual ritmo de trabalho -, atravessariam um século trancados em sessões de votação.
Há quase três dezenas de milhares de propostas “em tramitação”. Pela média histórica, somente uma em cada dez tem chance real de virar lei. As demais têm destino certo: o arquivo.
Esse processo de asfixia legislativa se agrava a cada semana, principalmente porque o Congresso adotou a política de não decidir nas áreas definidas pela Constituição como de sua competência exclusiva.
Simples e óbvia, a Carta manda o Legislativo legislar e fiscalizar, o Executivo executar, e o Judiciário julgar. Não tem sido assim e o resultado é um visível desequilíbrio entre poderes, inédita desde a redemocratização há 26 anos: a supremacia do Executivo e um gradativo avanço do Judiciário no vácuo deixado por um Congresso cada vez mais enfraquecido.
As evidências se multiplicam na pauta de pendências da Câmara e do Senado. O caso dos vetos presidenciais é exemplar. A Constituição permite ao presidente da República vetar projetos do Legislativo até 15 dias depois da aprovação. E impõe ao Congresso o dever de decidir se mantém ou derruba o veto presidencial no prazo de 30 dias. Existem 2.180 vetos presidenciais à espera de decisão dos parlamentares. Alguns estão na fila há uma década.
Abandonou-se também o julgamento de contas de governo. O Legislativo tem o poder, o dever e a competência exclusiva na análise e decisão sobre as contas do presidente da República. Mas permanecem contas presidenciais pendentes de 12 exercícios financeiros. A mais antiga é de 1990, do governo Fernando Collor. Passaram-se 21 anos e ainda não foi votada.
- O Parlamento não cumpre a ordem constitucional – constata o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ). – E aqui se revela uma das mais expressivas, discretas e proveitosas formas de poder político: o de não decidir.
No vácuo, o STF avança e decide
Não é por falta de tempo. O Código Florestal transita há 12 anos no Legislativo. Mais longo é o percurso da proposta sobre união de casais gays: há 16 anos está pronto para votação. Em vez de solução, surgiram outros 21 projetos similares. No vácuo, o Supremo Tribunal Federal avançou. E decidiu, “interpretando” a Constituição.
- Todo mundo tem na sua vida um exemplo de perda por causa dessa decisão do Legislativo de não decidir – lamenta o deputado. – O Executivo agora é quase o único poder, e a República virou ficção. Precisamos é de uma revolução pela lei.
O senador Itamar Franco (PSDB-MG), ex-presidente da República, não disfarça a irritação. Dias atrás ele recebeu o comando de uma comissão parlamentar para examinar uma Medida Provisória. Na primeira reunião, foi o único a aparecer. Esperou meia hora, desistiu e foi ao plenário onde fez um desabafo sobre sua frustração:
- Se continuarmos com esse processo de aviltamento do Poder Legislativo no País…Todos sabem o que acontece – protestou. – São situações como essa que acabam por fazer prosperar, nas ruas, dúvidas sobre a necessidade de um Parlamento. Nós estamos nos desmoralizando. Estamos sendo legisladores de brincadeira – de brincadeira!
O governo legisla mais que o Congresso, e cada vez mais. Desde 1989 sucessivos presidentes editam, em média, uma Medida Provisória por semana (na administração Dilma Rousseff, até agora, a média caiu para uma a cada duas semanas). Já somam 1.127. A maioria encontra-se “em tramitação” no Legislativo. Entre essas, há 52 que, embora provisórias, “tramitam” há mais de uma década.
No universo das MPs acontece um pouco de tudo. Por exemplo: uma delas, aprovada na semana passada, abrigava desde doações ao Haiti até uma completa reforma da Lei de Licitações Públicas, em caráter emergencial por causa da Copa do Mundo – embora o Brasil tenha sido escolhido para sediar a Copa há exatos três anos e sete meses.
- Temos certa dose de culpa, tudo isso não acontece por acaso – criticou a senadora estreante Ana Amélia Lemos (PP-RS). – Há uma relação de subordinação e clientelismo com o governo. E não é possível na democracia um poder se sobrepor ao outro, como acontece hoje na relação Executivo-Legislativo.
Sem cumprir as atribuições constitucionais básicas (legislar e fiscalizar), o Congresso se vê, também, cada vez mais limitado na capacidade de decidir sobre o Orçamento. Clássico símbolo da independência de poderes na democracia liberal, a autonomia do Legislativo sobre o orçamento tornou-se emblema da fragilidade institucional brasileira: quem decide quase tudo é o governo. A margem de manobra parlamentar atualmente é sobre uma fatia inferior a 1% da receita anual de impostos. Para o Executivo é o mundo ideal, porque pode usar essas emendas como instrumento para impor sua agenda ao Congresso.
Em tese, cada parlamentar pode apresentar emendas para obras até a soma de R$ 13,5 milhões. São aprovadas, mas o investimento depende da vontade do governo, que, numa tática de pressão, libera cada vez menos: em 2007, autorizou 32% dos investimentos aprovados por emendas; no ano passado, apenas 15%.
Nos plenários sobram desalento e autocrítica, como a do deputado Antonio Carlos Magalhães Neto (DEM-BA) na semana passada:
- Quando os parlamentares vão olhar para os seus mandatos e enxergar que é preciso haver uma afirmação daquilo que é sua atribuição e que não pode ser terceirizado?
FONTE: O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Atenção:
Comentários ofensivos a mim ou qualquer outra pessoa não serão aceitos.