Linhagem de seres unicelulares seriam “ponte” para a evolução dos organismos pluricelulares
Imagem das fontes hidrotermais do ‘Castelo de Loki’, onde os pesquisadores encontraram a nova linhagem de micro-organismos - R.B. Pedersen/Centro de Geobiologia da Universidade de Bergen
CESAR BAIMA - Todos os seres vivos mais complexos da Terra, sejam fungos, plantas ou animais, são em geral compostos por conjuntos de células conhecidas como eucarióticas. Elas têm núcleo definido, onde fica guardado seu DNA, e diversas organelas (pequenos órgãos) dentro de uma membrana, com vários formatos e funções diferentes. Seriam os seres eucariontes.
Mas a vida no planeta teria começado de forma bem mais simples. Com micro-organismos unicelulares, isto é, de apenas uma célula, em que seu material genético “flutua” livre em seu interior — onde também estão presentes apenas algumas poucas organelas essenciais. Essas células seriam conhecidas como procarióticas, daí tais seres unicelulares serem chamados procariontes.
O modo como os complexos seres eucariontes teriam evoluído a partir dos simples procariontes é até hoje objeto de intensos debates entre os cientistas. Mas esse mistério começa a ser solucionado com a recente descoberta de uma nova linhagem de micróbios que representariam o “elo perdido” entre os dois.
Encontrada em amostras de sedimentos colhidas junto a fontes hidrotermais a mais de dois mil metros no fundo do Oceano Ártico, entre a Noruega e a Groenlândia, esta linhagem de micróbios, batizada provisoriamente de Lokiarchaeota, ou apenas Loki, tem características de procariontes, como a falta de um núcleo definido, mas também algumas de eucariontes, ficando no meio do caminho entre ambos. Seu nome é uma referência tanto à região da cordilheira oceânica onde foram achados, o Castelo de Loki (que por sua vez lembra o deus nórdico associado à travessura e ao caos), quanto ao domínio taxonômico Archaea, cuja descoberta e classificação, nos anos 1970, pelo renomado biólogo Carl Woese já tinham surpreendido a comunidade científica.
Quebra-cabeça com peças faltando
Na época, Woese mostrou que, embora simples e pequenos como as bactérias, organismos procarióticos “típicos”, os integrantes do Archaea eram mais próximos dos eucariontes do ponto de vista filogenético (que analisa a história evolutiva de uma espécie). Com isso, passou-se a dividir a chamada “árvore da vida” na Terra em três ramos principais — os domínios Bacteria e Archaea, ambos com seres procariontes e unicelulares, e o Eukaryota, que abrange os reinos de vegetais, animais, fungos, algas e protozoários, sendo que estes dois últimos também podem ser unicelulares. E teve início a discussão se os seres mais complexos do planeta teriam de fato evoluído a partir dos Archaea, separando-se deles por volta de dois bilhões de anos atrás, e, se sim, como.
— O quebra-cabeça da origem das células eucarióticas é extremamente complicado, com muitas peças ainda faltando — destaca Thijs Ettema, pesquisador da Universidade de Uppsala, na Suécia, e líder da equipe de cientistas responsável pela descoberta, relatada na edição desta semana da revista “Nature”. — Esperávamos que os Loki revelassem mais algumas peças deste quebra-cabeça, mas, quando obtivemos os primeiros resultados, não podíamos acreditar no que estávamos vendo. Os dados eram simplesmente espetaculares. Ao estudar seu genoma, descobrimos que os Loki representam uma forma intermediária entre as células simples dos micróbios e os complexos tipos de células dos eucariontes.
Segundo os pesquisadores, a análise do DNA da nova linhagem de micróbios mostrou que ela tem mais de 150 genes para a produção de proteínas que até agora eram consideradas exclusivas da biologia dos eucariontes. Esses genes permitiriam aos Loki construir um esqueleto celular (citoesqueleto) com base na proteína conhecida como actina, erguendo e demolindo membranas para separar as diferentes organelas e promover o transporte interno de substâncias, para se remodelar e mudar de formato e potencialmente também para capturar material de seu ambiente via processos de endocitose ou fagocitose (em que as células “engolem” partículas do meio externo), funcionalidades antes só vistas em células eucarióticas.
O ‘sequestro’ das mitocôndrias
E é principalmente por esta teórica capacidade de realizar a fagocitose que os Loki são suspeitos de representar um ponto-chave no caminho da vida entre os procariontes e os eucariontes. Pelas teorias mais aceitas atualmente, as mitocôndrias, organelas que só existem nas células eucarióticas (e não estão presentes nos Loki), seriam resultado da evolução de bactérias “sequestradas” do ambiente pelas precursoras dos seres eucariontes.
— Descobrimos que os Loki dividem muitos genes únicos com as células eucarióticas, o que sugere que a complexidade celular emergiu cedo na evolução dos eucariontes — explica Anja Spang, também pesquisadora da Universidade de Uppsala e coautora do artigo na “Nature”.
Para Alexandre Rosado, professor e ex-diretor do Instituto de Microbiologia Paulo de Góes, da UFRJ, o achado é de grande importância para a ciência.
— De fato, tínhamos uma lacuna muito grande na compreensão deste ponto da evolução na vida da Terra — diz Rosado. — Era mesmo um elo que estava faltando. Esta descoberta vai ser uma revolução gigante no nosso entendimento desse processo.
Mas, para determinar se os Loki têm mesmo capacidades parecidas com as só vistas nas células eucarióticas, os cientistas ainda precisam estudar diretamente esses organismos. Isto porque, para descobri-los, eles usaram modernas técnicas de um campo recente da ciência conhecido como genômica computacional, com a qual extraíram todo o DNA existente na pequena amostra de sedimento do fundo do mar que tinham em mãos e depois reconstruíram estes dados genéticos para verificar quais micro-organismos estavam presentes nela.
— Não sabemos nem quão grandes os Loki são — reconhece Ettema.
Agora, com novas amostras dos sedimentos, os cientistas precisam replicar o ambiente onde esses micro-organismos vivem, sob o frio e a alta pressão do fundo do mar, e descobrir do que se alimentam para poder cultivá-los e observá-los diretamente, além de procurar por outros “parentes” da linhagem que estejam ainda mais próximos das células eucarióticas.
— Estou convencido de que teremos que rever nossos livros de biologia mais amiúde no futuro próximo — diz Ettema.
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