19 de dez. de 2024

Por que o gás natural é tão caro no Brasil; e como a Argentina pode mudar isso

Não é só o tamanho das reservas de Vaca Muerta. É o ambiente de livre concorrência

Gasoduto na província de Neuquén, centro-oeste da Argentina, a região que abriga Vaca Muerta. Foto: Getty Images


Por Alexandre Versignassi - Um metro cúbico do gás natural custa US$ 0,07 nos Estados Unidos. Aqui, US$ 0,44. 

Ou seja: para cada US$ 1 milhão que uma termelétrica de lá gasta com esse combustível, uma daqui desembolsa US$ 6 milhões. “Escala 6 x 1”. E nem estamos falando de câmbio, já que a comparação é sempre em dólar mesmo – custe a moeda americana o quanto custar. 

É por isso que a nossa conta de luz entra em bandeira vermelha quando o nível das hidrelétricas cai. Nesses momentos, acionam-se as térmicas, e a maior parte delas é movida a gás natural, que vale ouro no Brasil. 

Também sofre a indústria que precisa de calor – caso da de alimentos e bebidas, que demanda gás para pasteurização, secagem etc. Penam igualmente as fábricas de fertilizantes; as moléculas do gás natural (metano puro) são matéria-prima ali. Dado o preço alto no mercado nacional, 85% dos nossos fertilizantes são importados.      

O gás natural é caro no Brasil porque o tanto que produzimos por aqui não dá conta da demanda. O que chega da Bolívia, importado via gasoduto, também não basta para complementar. Resta trazer GNL, o gás natural liquefeito – geralmente dos EUA. E esse é bem mais dispendioso, já que viaja de navio.

Ilustração de um “metaneiro” – navio que transporta GNL, o gás natural liquefeito. Getty Images

Não só. Antes de embarcar, o gás precisa ser refrigerado a -162 ºC. E quando quando chega ao porto de destino tem de passar por uma regaseificação para entrar nos tubos brasileiros. Tudo isso, mais o frete, custa os olhos da cara. E o preço do gás por aqui vai para as alturas – pois o preço do GNL acaba determinando o valor do gás produzido no Brasil, e também o daquele que vem da Bolívia, mesmo que o transporte desse não saia tão caro assim.


Veja aqui como estamos hoje:

Em anos de seca, com as hidrelétricas pela hora da morte, a importação de GNL bomba. Em 2021, por exemplo, aportaram no Brasil 26 metros cúbicos por dia (m³/d). Bem mais do que aquilo que chega da Bolívia. Pior. As reservas por lá estão se esgotando, por falta de investimento em prospecção. A estimativa é a de que, em 10 anos, eles só consigam enviar, no máximo, 5 milhões de m³/d – míseros 7% da nossa demanda total.

A alternativa mais realista para evitar o colapso é encontrar outro fornecedor externo que possa vender para a gente via gasoduto – de preferência numa quantidade grande o suficiente para reduzir nossa dependência do GNL. E a boa notícia é que isso aconteceu. 

Há 15 anos, quando a Petrobras começava a tatear o pré-sal, a Argentina descobriu uma reserva monstruosa de gás natural em suas terras, perto da fronteira com o Chile. É a área de Vaca Muerta, uma formação geológica cheia de gás do tamanho de Alagoas (e batizada assim por conta de uma serra homônima lá por perto).

Desde o começo da década passada foram desenvolvendo a extração de gás em Vaca Muerta. A Argentina dependia do gás da Bolívia, como nosostros. Não mais. Agora já é exportadora – envia para Chile por gasodutos. Mas ainda há pelo menos 8,7 trilhões de metros cúbicos a explorar (o bastante para sustentar a demanda mundial de hoje por um século).

E o Brasil, vizinho de porta, é um destino óbvio de exportação.

Tanto que no dia 18 de novembro os governos do Brasil e da Argentina assinaram um “memorando de acordo” com a ideia de viabilizar o comércio de gás canalizado entre os dois países – dado o interesse estratégico para ambos.

A Argentina ganha uma fonte de moeda forte; recurso escasso por lá. E o Brasil uma de gás natural barato, recurso escasso por aqui. De acordo com o Ministério de Minas e Energia, o gás argentino chegaria às nossas distribuidoras por US$ 0,26 a US$ 0,30 o metro cúbico – até 40% mais barato do que hoje.

Segue uma tabelinha para ilustrar melhor, agora com os preços por milhão de BTUs (British Thermal Units), o padrão do mercado (e que equivale a 26,8 metros cúbicos).

A expectativa é terminar 2025 com 2 milhões de m³/d vindos de Vaca Muerta, conforme fecham-se os primeiros contratos de fornecimento. E o objetivo é chegar a 30 milhões de m³/d até 2030 – o que reduziria nossa dependência de GNL mesmo num cenário de forte aumento na demanda de gás natural nos próximos anos.


LEIA MAIS: Com seca persistente, Brasil avalia mais importações de GNL no início de 2025       

Nada mau. Tanto que uma semana depois do memorando, em 27 de novembro, saiu o primeiro negócio: a francesa TotalEnergies, uma das várias companhias de óleo e gás que opera em Vaca Muerta, fechou um acordo de exportação com a brasileira Matrix Energia. E virão muitos mais – porque o encanamento para trazer gás lá do pé dos andes até o chuveiro da sua casa já estava pronto antes mesmo da descoberta de Vaca Muerta.


O lado bom da cizânia

Tudo por conta de uma ironia do destino. Os gasodutos argentinos que traziam gás boliviano já passavam por cidades que ficam sobre a área de Vaca Muerta.

Como a Argentina deixou de importar gás da Bolívia, dá para inverter a direção. O gás dos hermanos sobe até as terras bolivianas e de lá flui para a rede brasileira de gasodutos.

Para alcançar os 30 milhões de m³/d será preciso mais estrutura. Mas a que existe hoje já basta para dar o ponta pé inicial.

E Vaca Muerta traz uma vantagem inusitada. “A cereja do bolo é o fato de estarmos numa janela em que não há alinhamento entre governos”, diz Rivaldo Moreira Neto, diretor da área de infraestrutura da consultoria Alvarez & Marsal. 

O ponto de Rivaldo é o seguinte. Se Lula e Milei estivessem em lua de mel, é provável que as petroleiras estatais dos dois países tomassem conta do parquinho, com Petrobras e YPF, sua equivalente argentina, monopolizando todos os acordos de fornecimento – num padrão inimigo da concorrência e amigo dos preços altos.

Ele cita como exemplo o caso do gás boliviano. “O mercado brasileiro nunca pôde ir, ele mesmo, buscar gás. Sempre foi a Petrobras [junto à YPFB, a estatal boliviana do setor]”. Pior para o Brasil: a estatal sempre tabelou o gás boliviano usando como referência o preço do GNL, naturalmente mais caro.

O caso de Vaca Muerta é bem diferente. 25 companhias de óleo e gás operam ali – incluindo a Petrobras, que atua como coadjuvante (tem uma participação de 34% em um dos diversos campos ali, junto com a YPF e a Pampa Energía, um grupo privado da Argentina).

Do lado brasileiro, o jogo é o mesmo: várias distribuidoras daqui começam a buscar seu gás em Vaca Muerta por conta própria. Cria-se aí um ambiente de livre concorrência, que produz preços mais baixos – por cortesia da cizânia ideológica entre o governo daqui e o de lá.

Com ou sem rusgas entre futuros mandantes, que o cenário siga assim. Estado bom, afinal, é Estado que não atrapalha.

Agradecimento: Diogo Lisbon, pesquisador do FGV Ceri – Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura.

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