26 de ago. de 2021

Ludmila Lins Grilo - "Os perigos do projeto da nova lei de segurança nacional"

Para a juíza Ludmila Lins Grilo, projeto da Lei de Segurança Nacional "resvala perigosamente na liberdade de expressão"

                            Ludmila Lins Grilo

                            Especial para o BSM

A lei de segurança nacional (Lei 7.170/83) define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências. 

Historicamente, é considerada uma espécie de “herança maldita” do regime militar, em razão de dispositivos como o do artigo 26, que prevê como crime caluniar ou difamar o Presidente da República, do Senado, da Câmara ou do Supremo Tribunal Federal (em suma, ofender a honra de qualquer presidente de quaisquer dos três poderes), imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação. 

Esse dispositivo resvala perigosamente na liberdade de expressão, uma vez que as críticas a agentes públicos – especialmente políticos – são, em regra, mais acaloradas, havendo uma zona cinzenta e não muito bem definida do que configuraria um fato ofensivo à reputação (ilícito) e do que representaria apenas uma pesada crítica (lícito).

Tal dispositivo, em especial, é visto por grande parte da comunidade jurídica como excessivamente limitador da liberdade de expressão, por oportunizar perseguições políticas a críticos e opositores dos detentores do poder.

Há ainda tipos penais extremamente abertos, como “tentar mudar o regime vigente ou o Estado de Direito”, ou “tentar impedir o livre exercício dos poderes”. Historicamente, tipos penais tão abertos, como estes, remetem a regimes autoritários, uma vez que funcionam como uma espécie de draga que absorve tudo o que está a sua frente – uma verdadeira janela de oportunidade para autoridades com tendência ditatorial. 

Esse era o espírito do parágrafo 2º do Código Penal alemão do regime nazista, que em 1935 recebeu a seguinte redação: “É apenado quem realiza um fato que a lei declara punível ou que, de acordo com o são sentimento do povo em concordância com a ideia básica de uma lei penal, mereça pena”. (1)

O “são sentimento do povo” ainda era invocado em vários outros dispositivos, como o da legítima defesa: “legítima defesa é a defesa que, de acordo com o são sentimento do povo, seja necessária, e que seja exercida para repelir, de si ou de outrem, uma agressão injusta e atual” (§23). 

O que seria exatamente o “são sentimento do povo”? Algo tão subjetivo como essa expressão leva, fatalmente, a uma situação de arbitrariedade do julgador da ocasião, que, segundo seus próprios sentimentos e posando de oráculo do bem e do mal, sacramentará o que entende ser um são sentimento do povo. Esse artigo foi revogado após a 2ª guerra mundial.

A tentativa de alteração dos dispositivos da lei de segurança nacional brasileira se iniciou em 1991, por meio de um projeto de lei proposto pelo Deputado Federal Hélio Bicudo (PT/SP), que tramitou por 30 anos (PL 2462/91).

Apenas em 04/05/2021, o PL foi aprovado na Câmara dos Deputados, e seguiu para o trâmite no Senado, tendo então recebendo o número 2108/21.

O PL 2108/21 foi aprovado pelo Senado Federal em 10/08/21, e foi remetido para sanção presidencial em 12/08/21. Ele revoga integralmente a Lei n.º 7.170/83, instituindo novos dispositivos no Código Penal, que passa a ter um título específico para os “crimes contra o estado democrático de direito” (título XII), cujos capítulos são: “dos crimes contra a soberania nacional” (capítulo 1); “dos crimes contra as instituições democráticas” (capítulo 2); “dos crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral” (capítulo 3); “dos crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais” (capítulo 4); “dos crimes contra a cidadania” (capítulo 5); “disposições comuns” (capítulo 6). 

Pela atenta leitura dos dispositivos acrescentados, vislumbra-se sérios problemas em relação a alguns deles, em especial pela amplitude e abstração dos termos utilizados na redação de alguns tipos penais. 

Como se sabe, no Direito Penal, as condutas típicas devem ser perfeitamente delineadas, de forma que não reste dúvida ao cidadão do que é crime, e do que não é. Tipos penais muito abertos, abstratos, fazem com que se crie um clima de extrema instabilidade política e social, uma vez que qualquer conduta poderá sofrer interpretações elastecidas e maliciosas, de forma a ser sempre abarcada na tipificação penal.

Tal situação leva ao mesmo problema verificado na Lei n.º 7.170/83, que se pretende revogar justamente por criar esta instabilidade social. Vejamos os artigos mais problemáticos em matéria de excesso de abstração:


1. Crime de “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” (art. 359-L):

“Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: 

Pena: reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.”

Este tipo penal fala em abolir o Estado Democrático de Direito, o que é evidentemente algo extremamente subjetivo, que colocará excessiva margem interpretativa nas mãos do Poder Judiciário.

Logo em seguida, o tipo penal diz que essa abolição da democracia deve se dar quando o agente impede ou restringe o exercício dos poderes constitucionais. Aqui, a técnica legislativa também deixa a desejar. Qualquer um que, eventualmente, ingresse com um pedido de impeachment, ou com uma ação penal contra autoridades de algum dos três poderes, ainda que justos, poderá sofrer retaliações com base neste dispositivo, sob o argumento de estar fazendo uma grave ameaça ao exercício de algum poder.


2. Crime de “comunicação enganosa em massa” (art. 359-O): 

“Promover ou financiar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos, e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral:

Pena: reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.

Aqui temos o vulgo “crime de fake news eleitoral”. As atuais agências de fact-checking, que acabaram por se mostrar como verdadeiras patrulhas do pensamento divergente, demonstram o quão perigoso pode ser este tipo penal, especialmente no trecho “fatos que sabe inverídicos”. 

Em política, qualquer fato que venha à tona para expor um adversário é imediatamente classificado pelo alvo como fake news – e sabe-se-lá em quanto tempo (e se) o fato restaria esclarecido ou se demandaria interpretações repletas de subjetivismo. O exercício da atividade política no Brasil se tornaria perigoso e inviável.  

Esse tipo penal, especialmente em se tratando de assuntos políticos, tornaria temerária qualquer ação estratégica de exposição do adversário, resultando em total inviabilidade das campanhas eleitorais.


3. Crime de incitação ao crime (art. 286, parágrafo único): 

“Incitar, publicamente, a prática de crime”: 

Parágrafo único. "Incorre na mesma pena quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade”.

Pena: detenção, de três a seis meses, ou multa”.

Aqui, temos a possibilidade de a opinião, o posicionamento político, ou até mesmo a fofoca elevados à categoria de crime. Uma coisa é a incitação ao crime, delito já previsto no artigo 286. Outra coisa bem diferente é a incitação de animosidade, aqui ganhando, de forma inadequada, o mesmo status delituoso da incitação ao crime. 

Além da questão referente à violação do senso das proporções referido no parágrafo anterior, verifica-se que este parágrafo único é inconstitucional, por se encontrar em completo desacordo com o teor do artigo 142 da Constituição Federal. Vejamos.

O artigo 142 da Constituição dispõe expressamente acerca da possibilidade de que quaisquer poderes constitucionais podem tomar a iniciativa de acionar as Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem:

“As Forças Armadas (...) destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Portanto, a própria Constituição Federal prevê a possibilidade de as Forças Armadas serem acionadas para a garantia da lei e da ordem, deixando em aberto, contudo, as hipóteses em concreto que admitiriam tal intervenção. Portanto, a animosidade entre as Forças Armadas e instituições civis é algo perfeitamente previsto pelo art. 142 da Constituição como uma possibilidade, tanto que dispõe expressamente sobre seu acionamento por quaisquer dos poderes. 

Sobre os limites de atuação das Forças Armadas, há até mesmo juristas de respeitável trajetória que advogam o atributo da moderação constitucional às Forças Armadas. Transcreve-se, aqui, a lição de Ives Gandra Silva Martins, in verbis:

“Minha interpretação, há 31 anos, manifestada para alunos da universidade, em livros, conferências, artigos jornalísticos, rádio e televisão é que NO CAPÍTULO PARA A DEFESA DA DEMOCRACIA, DO ESTADO E DE SUAS INSTITUIÇÕES, se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, NAQUELE PONTO, A LEI E A ORDEM, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante.” (2)

Independentemente do posicionamento mais arrojado do prof. Ives Gandra Martins, ainda assim, verificar-se-ia, portanto, uma clara inadequação do pretendido art. 268, parágrafo único do Código Penal ao artigo 142 da Constituição Federal, uma vez que prevê como crime algo que a própria Constituição admite como uma possibilidade.

Verifica-se, ainda, que o crime de calúnia, difamação e injúria contra os presidentes dos três poderes permanece no espírito da lei, só que agora como crime comum do Código Penal, com aumento de pena na fração de 1/3 (um terço). O Código Penal já previa essa causa de aumento para o Presidente da República (art. 141, I), e agora passa a prevê-la também para os presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal. 

Assim, o artigo 26 da velha lei de segurança nacional permaneceria pairando no ar, só que com uma pena mais branda: a reclusão de 1 a 4 anos se torna detenção de no máximo 2 anos, mais a causa de aumento de 1/3 (um terço).

 Diante de todo o exposto, verifica-se que os 30 anos de tramitação dos novos dispositivos da lei de segurança nacional não significaram exatamente que estes foram adequadamente amadurecidos. Os três dispositivos aqui destacados (artigo 359-L,  359-O e art. 286, parágrafo único), em especial, são os que mais colocam em risco a ordem pública, a liberdade dos cidadãos e a paz social.

 Notas:

1. Fragoso, Cristiano, no artigo “Código Criminal e Código Criminoso: subsídios e notas ao Código Penal nazista de 1936”, publicado no livro “Escritos Transcisciplinares de Criminologia, Direito e Processo Penal – Homenagem aos Mestres Vera Malaguti e Nilo Batista”, Editora Revan, Rio de Janeiro, 1ª edição, p. 229.

2. Martins, Ives Gandra Silva, em “Cabe às Forças Armadas moderar os conflitos entre os Poderes”, disponível em ConJur - Ives Gandra: O artigo 142 da Constituição brasileira, acesso em 22/08/2021.

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